FACULDADE DE DIREITO – UFPR

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O ensino jurídico na Curitiba da primeira metade do século XX: Filosofia do Direito, Direito Civil e Direito Penal nos albores da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná[1]

Paulo Henrique Dias Drummond e

Priscila Soares Crocetti

1. INTRODUÇÃO

A hoje centenária Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná foi fundada em 1912, juntamente com mais cinco outros cursos superiores no seio da então Universidade do Paraná (UP)[2], primeira Universidade do Brasil. Fruto não apenas da fervorosa iniciativa dos membros fundadores, do momento de desenvolvimento socioeconômico paranaense e do apoio da sociedade e do governo locais, mas especialmente das possibilidades trazidas pela chamada Reforma Rivadávia Correa (Decreto n.º 8659, de 1911), esta instituição de ensino, inicialmente privada, fundada pela pequena elite política e social paranaense do início do século XX, viveu em seus primeiros quarenta anos de funcionamento um período de notável instabilidade institucional. Logo no ano de 1918 a Universidade foi dissolvida em razão das dificuldades trazidas pela Lei Maximiliano (Lei n.º 11.530, de 1915[3]), permanecendo ativos, agora como Faculdades isoladas, apenas os cursos de Direito, Engenharia e Medicina, situação que implicou uma verdadeira debandada de alunos, todos receosos de que seus diplomas não fossem, ao final, reconhecidos pelo poder central. Nem mesmo as equiparações do curso de Direito, em 1920, e do curso de Medicina, em 1922, foram suficientes à superação da instabilidade institucional que caracterizou os primeiros anos de funcionamento da instituição, marcados por dificuldades financeiras, pela pouca assiduidade dos professores e pela permanente tentativa promovida pelos seus membros de reconhecimento da Universidade pelo poder central. O tão almejado reconhecimento ocorreu apenas em 1946, com o reagrupamento dos cursos, seguindo pela federalização da instituição no ano de 1951.

Fundada que foi, no seio da Universidade, por uma pequena elite política, a Faculdade de Direito (FDUP) teve seu quadro docente formado invariavelmente por figuras públicas “paranaenses” do período, grupo esse caracterizado culturalmente por um perfil intelectual ainda embebido pelo legado do século XIX, em que o chamado homem de letras figurava como modelo de intelectual. A primeira geração de professores – formada não só pelo primeiro quadro docente, mas também por todos os outros professores que, mesmo havendo ingressado posteriormente, ainda eram caracterizados por um mesmo perfil cultural (marcado por práticas culturais como o jornalismo, a produção poética, um saber ainda não claramente especializado, bem como pela ausência de uma produção acadêmica) – somente será efetivamente sucedida a partir da segunda metade da década de 40: embora as condições materiais para uma renovação do quadro docente tenham começado a estabelecer-se com uma série de concursos iniciados na metade da década de 30 (responsáveis que foram pelo início da renovação do quadro docente), assim como em razão das novas exigências feitas ao corpo docente (indicadas pelos Regimentos Internos do período, que acenavam a intenção institucional de contar com professores com maior atuação acadêmica, ou seja, uma atuação voltada à produção teórica especializada, consubstanciada especialmente em artigos e livros científicos), parece que somente se pode vislumbrar uma sucessão de gerações a partir da segunda metade dos anos 40, processo que se consolida apenas no início da década de 50. Com um quadro docente majoritariamente composto, a partir desse momento, por professores cuja produção cultural já estava marcada por um padrão científico, é então possível pensar-se em um perfil predominantemente acadêmico dos professores do curso de Direito.

Tendo em conta os aspectos institucionais da fundação e desenvolvimento do curso de Direito da Universidade do Paraná , bem como os traços caracterizadores do perfil intelectual do seu quadro docente, aos quais até aqui se fez rápida referência, o objetivo do presente trabalho é analisar essa instituição de ensino reputando-a como centro disseminador de cultura jurídica, observando, a partir dessa perspectiva, o conteúdo ministrado em algumas das cadeiras jurídicas ofertadas pela instituição na primeira metade do século XX, nomeadamente, as disciplinas de Filosofia do Direito, Direito Civil e Direito Penal. Trata-se, em última análise, de buscar-se elementos que identifiquem a cultura jurídica letrada paranaense em seus albores, já que até esse momento inexistia no Estado do Paraná qualquer centro de ensino jurídico. Tomar-se um centro de estudos jurídicos, nomeadamente uma Faculdade de Direito, a partir de uma perspectiva histórica que observe o ensino ministrado como um veículo de disseminação cultural, significa buscar perceber a configuração do ensino como espectro revelador dos traços de uma determinada cultura jurídica (de um determinado discurso jurídico) posta em circulação justamente através da cátedra num determinado momento histórico[4].

2. Filosofia do Direito: BIOLOGISMO renitente e o trânsito entre POSITIVIDADEs reinantes

A Filosofia do Direito (considerada em sentido amplo) é ramo do conhecimento jurídico que justamente por se debruçar sobre os fundamentos desse saber (apresentando diversas configurações no curso da história, umas mais e outras menos especulativas, até o ponto mesmo de considerar-se a extinção da própria filosofia, como será visto) revela-se bastante sensível às diversas noções atribuídas ao Direito e à atuação do jurista ao longo do tempo. Observando-se os conteúdos assumidos pela disciplina de Filosofia do Direito pode-se questionar sobre o que significava fazer Ciência do Direito em determinado momento (ou mesmo sobre a possibilidade de se fazê-la) e sobre as possibilidades de reflexão apresentadas ao jurista com relação ao seu objeto, o que afeta sobremaneira o ensino do Direito, já que a concepção que se tenha sobre o papel do jurista influenciará diretamente no conteúdo e no perfil do ensino ministrado.

No ano em que o curso de Direito da UP começou suas atividades, integrava a primeira grade curricular do curso (1913) a cadeira denominada Enciclopédia Jurídica, incluída nos currículos dos cursos de Direito nacionais por força do Decreto n.º 8.662/1911, que regulamentou a antes mencionada Lei Rivadávia Correia,extinguindo a cadeira de Filosofia do Direito e estabelecendo como uma das cadeiras do primeiro ano a Introdução Geral ao Estudo do Direito[5]. Mais do que uma irrelevante questão terminológica, a substituição da cadeira de Filosofia do Direito pela de Enciclopédia Jurídica, bem como a própria concepção desta última como uma introdução ao estudo do Direito, dizem respeito ao impacto do método positivo-naturalístico[6] no âmbito da reflexão jurídica, refletindo a própria “crise” da Filosofia do Direito, como denominou o professor João Arruda, da Faculdade de Direito de São Paulo (FDSP)[7].

A UP logo fez constar das estantes da biblioteca alguns poucos livros que deveriam servir de apoio ao ensino da disciplina de Enciclopédia Jurídica, dentre os quais devemos aqui citar os escritos de Ludgero Coelho[8], de José Lopes Pereira de Carvalho[9], de Antonio Augusto de Serpa Pinto[10], bem como O Direito Puro, de Edmond Picard.

Um destaque maior à última obra mencionada: o conhecido professor da Universidade Nova de Bruxelas, a quem Ihering dedicou o seu A Evolução do Direito, trata justamente da noção de um conhecimento enciclopédico do Direito, chamando de direito puro aquele atingido a partir da depuração de tudo aquilo que seja “relativo”, “mutável”, “temporal”, “flexível”, “efêmero”, ou seja, suficientemente abstrato para ser considerado livre das superficiais e confusas aparências dadas por contextos concretos, por determinados povos. Comparando-se a um botânico e com a declarada intenção de simplificar em uma exposição ordenada e pura uma explicação do direito que dê conta das suas “permanências”, daquilo que é “atemporal” e “imutável”, “constante e inalterável apesar do espaço e do tempo”, Picard dedica-se a elaborar uma obra que sirva de guia aos iniciantes nos estudos jurídicos, dando-lhes sempre a noção da unidade do Direito e esclarecendo-lhes as relações mantidas entre os diversos ramos[11].

As explicações de manuais como os de Picard, que trazem as mesmas ideias contidas nos outros antes mencionados, dizem que a noção da Ciência do Direito como um saber enciclopédico decorre de uma concepção do Direito que o concebe como uno (já que não corresponde ao direito positivo estatal, e tampouco às legislações próprias a um povo ou a um determinado tempo histórico), mas que pode e deve ser estudado e explicado a partir dos seus diversos ramos.

O fato de existir uma disciplina do curso de Direito intitulada Enciclopédia Jurídica (embora ela tenha tido vida curta[12]), dá bem conta do discurso difundido naquele momento no Brasil a respeito do conhecimento jurídico: a discussão travava-se no contexto da inserção do conhecimento jurídico no seio das demais ciências (desenvolvidas sob o influxo do naturalismo), de modo que deveria ele, consequentemente, se posicionar em um campo definido por uma metodologia comum. Ainda que os manuais consultados por vezes atestem que esse mapeamento do Direito visado pela Enciclopédia Jurídica tem como objeto o direito positivo, o fato é que a concepção de fundo que dá sentido a uma tal disciplina é essa que tira os olhos do jurista do direito positivo estatal voltando-os à sociedade, considerada como realidade naturalística.

E a configuração específica da Enciclopédia Jurídica representa um extremo a que se sujeita o ensino do Direito por conta da ampla adoção dos métodos e do objeto próprio a uma concepção naturalística do Direito: exclui-se a Filosofia dos cursos de Direito pela predominância indiscutida de um determinado método e reduz-se a introdução aos estudos jurídicos a um panorama geral a respeito dos vários ramos do Direito, todos bem ou mal identificados (quase nada diferenciados) a partir da recondução a um mesmo tronco comum. A incursão naturalística no âmbito da conformação dos estudos jurídicos parece ter na Enciclopédia Jurídica, assim, um testemunho do extremo a que se pode chegar; e é natural que a Filosofia do Direito não tenha espaço em uma tal configuração dos estudos jurídicos: estabelecido “o” método que deve ser observado caso se queira determinado saber como Ciência, o próprio método (esse positivista) pretende substituir a Filosofia. E nesse contexto, pode-se mesmo colocar a própria extinção da Ciência Jurídica (ou pelo menos daquela Ciência Jurídica que não se renda ao cientificismo, tornando-se Sociologia), já que tendo por objeto uma lei artificial (aquela fruto da vontade humana) – considerada em contraste com as leis naturais encontradas a partir da observação – não se pode pretender Ciência[13].

É certo, por outro lado, que a súbita reinclusão da cadeira de Filosofia no currículo dos cursos de Direito também dá conta de que o discurso circulante no momento era composto por pretensões mais amplas, por questões ainda muito latentes, incompatíveis, portanto, com os bens definidos ramos da Enciclopédia Jurídica[14]. Isso justifica, ao que parece, a repentina volta da Filosofia do Direito.

De qualquer forma, o fato é que a Filosofia do Direito logo voltou a ter espaço nos currículos das Faculdades de Direito, aí permanecendo por aproximadamente quinze anos, quando novamente sofreria um nova tentativa de extirpação, mais uma vez por uma certa “positividade” reinante; não mais aquela positividade naturalística, sociológica, mas um positividade formalística. Antes de analisar esse nova marginalização, vale a pena perquirir sobre os conteúdos ministrados na disciplina de Filosofia do Direito no curso de Direito de Curitiba, buscando perceber as principais influências recebidas e propagadas pelo novo curso.

 

2.1 Entre o Norte e o Sul

À parte dos manuais dedicados ao estudo da Enciclopédia Jurídica, disciplina que inaugurou o curso de Direito em 1913, ainda no primeiro ano são adquiridas algumas obras que não diziam respeito especificamente a uma introdução geral ao estudo do Direito, e que iriam servir de textos de apoio à disciplina de Filosofia do Direito (reincluída no currículo da FDUP já em 1914, ou seja, antes da Lei Maximiliano). Destaque inicial para A Evolução do Direito[15]e A Luta pelo Direito, ambas de Rudolf von Ihering, obras que parecem bem indicar as influências sofridas pelo autor dos programas de ensino. Por outro lado, conforme se pôde notar da análise do livro de consultantes[16], os Estudos de Filosofia do Direito, de Pedro Lessa, e os Ensaios de Filosofia do Direito, de Silvio Romero[17], o Tratado elementar de Filosofia, de Paul Janet, bem como os Estudos de Filosofia do Direito, de Laurindo Leão, foram reiteradamente o foco de interesse dos alunos do primeiro ano.

Desde logo, deve-se sublinhar um fato absolutamente notável e relevante: a cadeira de Filosofia do Direito teve na Universidade do Paraná um mesmo professor encarregado pela disciplina por aproximadamente 30 anos. Trata-se do advogado Benjamin Lins de Albuquerque, personalidade integrante do grupo de fundadores da Universidade do Paraná,um dos cinco formados na Faculdade de Direito do Recife (FDR), que, assumindo a referida cadeira já em 1913, deixará o quadro docente do curso de Direito somente no ano de 1943, quando se aposenta[18].

Os pontos dos primeiros programas de ensino de Filosofia do Direito, elaborados para o ano de 1915[19], revelam uma disciplina marcada pelo naturalismo próprio do período. Desenvolvem-se, por um lado, dentro da discussão, própria do século XIX, a respeito da filosofia positiva (o que o autor chama de “filosofia moderna”, à qual corresponde a filosofia do direito) e todas as implicações que o determinado método que lhe é correlato traz aos estudos científicos da realidade e, em especial, ao estudo do Direito.

O estudo da humanidade (realizado por uma ciência determinada e por métodos próprios) passa pela análise da organização cerebral do homem, das leis da transmissão hereditária, da luta pela existência e pela conservação da espécie, o que atesta um notável biologismo que parece bem indicar uma inequívoca e esperada filiação de Lins de Albuquerque a uma determinada tradição: aquela da Escola do Recife (em cujo ambiente intelectual o nosso professor se formou), notadamente ao que diz respeito ao darwinismo jurídico de Rudolf von Ihering.

Por outro lado, Lins de Albuquerque aparentemente se espelha nos programas de ensino concebidos por Pedro Lessa para o ensino da Filosofia do Direito na FDSP (como o elaborado para o ano de 1909[20]) ao diferenciar arte, ciência e filosofia do direito; ao apontar esquematicamente as principais escolas de filosofia do direito, quais sejam, a chamada “Idealista Transcendental”, de Kant, a “Histórica”, de Savigny, e a “Evolucionista de Ihering”.

Certamente por força da influência do ambiente intelectual em que se formou Benjamin Lins, os programas de ensino revelam a adoção de várias passagens do pensamento de Rudolf von Ihering: além dos pontos a que já foi feito referência, parece mesmo que o núcleo do programa era retirado das obras A luta pelo direito e a Evolução do Direito: a noção de direito força; o salário e a coação como motores egoístas do movimento social, o sentimento do direito (figura passível de aperfeiçoamento). Assim, se por um lado muitos dos pontos parecem diretamente inspirados nos programas de ensino de Pedro Lessa, como mencionado, por outro parece claro que Benjamin Lins mostra-se pensador imerso nas questões postas pelo segundo Ihering[21].

É interessante perceber que das primeiras aquisições da biblioteca da Universidade do Paraná não constaram livros de Tobias Barreto, porém sim a obra Ensaios de Filosofia do Direito de Silvio Romero, autor que não compartilhava com Tobias aquela posição de delação dos defeitos da sociologia positivista[22]; ao contrário, a respeito dela mantinha uma consideração otimista. Assim, parece que paralelamente ao evidente didatismo da obra de Pedro Lessa, outra questão pode ter influenciado a aproximação de Benjamin Lins do seu manual de Filosofia do Direito: o sociologismo de Lessa. Nesse particular, também sobressai dos programas de Benjamin Lins a inclusão de pontos ao destinados ao estudo das leis de formação das sociedades, das leis fundamentais da dinâmica e da estática (no homem e na sociedade, o que revela uma clara influência comteana), das forças que nela atuam, bem como das relações do Direito com a Sociologia, com a Antropologia, com a Economia Política e com a Política (todas questões pontualmente abordadas por Pedro Lessa).

Aceitação da Sociologia que, entretanto, não apaga a marca fundamental do ensino, que era o biologismo próprio à Escola do Recife e a darwinisação do Direito proposto por Ihering. Já no programa de 1913 Benjamin indicava expressamente a dependência do Direito em relação à Biologia, imprimindo aos estudos de Filosofia do Direito, assim, esse perfil naturalístico, amparado basicamente nas concepções de Ihering, mas se valendo também do sociologismo de Pedro Lessa e Silvio Romero.

Uma visão da sociedade e do Direito que reconhece a existência do conflito, e concebe o Direito como força; o Estado, ele próprio, é força social e, como bem percebido por Lilia Schwarcz[23], capaz de imprimir uma direção à sociedade. Um naturalismo marcado pela herança da Escola do Recife e que diferencia Benjamin Lins, por exemplo, do professor substituto Antônio Martins Franco, bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, que de lá trazia o liberalismo que marcou esta instituição. Concepções diversas da sociedade e do Estado, está claro, ambas difundidas pela cátedra, mas que encontram ponto comum no direcionar o olhar dos estudantes para além do direito positivo.

2.2 A Filosofia do Direito e a Dogmática Jurídica: uma tardia consolidação da disciplina de Introdução à Ciência do Direito?

O programa de 1915 não sofrerá substanciais modificações até o ano de 1930: o programa de ensino deste último ano é basicamente o mesmo de 1915, fortemente marcado pelas discussões próprias ao naturalismo jurídico. Parece mesmo que o pensamento de Benjamin Lins se manteve impermeável a novas ideias, já que passados mais de 15 anos de ensino, praticamente nada mudou em seu programa. No ano de 1931, entretanto, o programa de ensino teve de mudar, ou melhor, de se adequar: por meio do Decreto nº 19.851, de 11 de abril do mencionado ano, estabelece-se um currículo mínimo para os cursos de Direito. Referido diploma cria a disciplina de Introdução à Ciência do Direito, em substituição à Filosofia do Direito, disciplina esta que deveria ser ministrada no primeiro ano.

A transformação da cadeira de Filosofia do Direito em Introdução à Ciência do Direito – mudança que não configura mera modificação na denominação da disciplina, mas sim uma própria alteração de sua substância – fez com que Benjamin tivesse de, forçadamente, adequar seus programas de ensino a um discurso jurídico-educacional que então pretendia hegemonizar-se. O programa para o ano de 1931, embora ainda em grande medida composto pelas mesmas questões que marcaram os programas anteriores, passa a prever o estudo dos atos (estudados em suas modalidades, bem como os casos de validade, nulidade e anulabilidade) e fatos jurídicos, dos contratos; o estudo da norma jurídica; passa a tratar da relação entre o Direito e a Lei.

É interessante notar que no ano de 1932 Benjamin Lins se afasta de suas atribuições docentes, sendo substituído pelo professor Antônio Martins Franco, a quem coube a elaboração do programa de ensino para a cadeira de Introdução à Ciência do Direito para aquele ano. Trata-se de programa também muito marcado por questões atinentes ao estudo positivo-naturalístico da sociedade, mas que por outro lado, indicando o rumo que a disciplina parecia tomar, também previa o estudo dos atos e fatos jurídicos. Faz-se expressa menção ao estudo do direito positivo (papel do legislador, fontes do Direito), das chamadas ciências propedêuticas do direito e da lei (elaboração, obrigatoriedade; a lei no espaço e no tempo, o seu caráter não retroativo; interpretação, erro e ignorância), algo absolutamente inédito. No ano de 1934 foi responsável pela elaboração do programa de ensino para essa mesma cadeira o professor interino José Augusto Ribeiro. Nesse programa, além do estudo da Lei em vários aspectos, chama a atenção, primeiro, a significativa ausência de questões naturalísticas e, segundo, o estudo da teoria geral do direito, dos princípios gerais do direito, dos elementos componentes do Estado (população, território, governo).

O que interessa notar dessas substituições é que pela primeira vez ingressam como pontos da cadeira de Introdução à Ciência do Direito questões que remetem a uma outra tradição, substancialmente distinta à perspectiva naturalística, embora com ela partilhasse a necessidade de partir dos dados “positivos”. As noções de ato e fato jurídico, e especialmente a concepção de uma teoria geral do Direito, remonta à tradição dogmática alemã, nomeadamente da Pandectística, sendo que a Teoria Geral do Direito (allgemeine Rechtslehre) representa a expressão mais elaborada e ambiciosa do conceitualismo e do formalismo da dogmática, pretendendo a “determinação e sistematização dos ‘conceitos jurídicos’ ditos fundamentais (…) concebidos mediante a análise dos princípios gerais dos vários ramos do ordenamento jurídico positivo”[24]. Toda uma corrente formalística que, possivelmente em razão dessa forte persistência das questões naturalísticas, ainda não havia atingido a Filosofia do Direito, disciplina que por força desta (agora eficaz) influência era transformada em Introdução à Ciência do Direito.

Quando em 1935 Benjamin Lins retorna e elabora o programa de ensino para a cadeira de Introdução à Ciência do Direito são absolutamente notáveis as alterações que o conteúdo da cadeira sofre: embora também nesse programa alguns temas anteriores permaneçam, é notável a nova preocupação com questões atinentes a uma perspectiva formalística[25]. Logo no primeiro tópico do programa Kelsen e a sua concepção de “Ciência jurídica pura” são mencionados, sendo logo em seguida formulada a seguinte sugestiva questão: “O direito é ciência ou organização?”. Pouco adiante o direito positivo recebe detida atenção, mencionando-se a técnica na formação das normas jurídicas, quais seriam as fontes do direito positivo, a hierarquia das leis, o problema da vigência da lei. O Direito é tratado como ordenamento: elaboração científica do Direito, as lacunas do Direito, os princípios gerais do Direito, e a analogia. O Estado também é analisado, tanto no que toca à relação entre o Estado e o Direito quanto àqueles elementos formadores do Estado conforme propugnado pela Teoria Geral do Estado. Todas questões absolutamente ignoradas por Benjamin Lins até então.

Trata-se uma disciplina que ao invés de introduzir o aluno nos aspectos de uma ciência naturalística do Direito concede-lhe as noções básicas de um Direito não mais concebido como realidade natural, mas como conjunto de normas postas pelo Estado a respeito das quais se faz necessário ser detentor de uma técnica própria[26].A Filosofia do Direito transmuta-se, então, em uma disciplina propedêutica, introdutória em relação às matérias dogmáticas, a partir do influxo de duas tendências formalísticas[27] claramente identificadas nos programas de ensino: aquela identificada com o formalismo alemão e a concepção de uma Teoria Geral do Direito e por aquela outra constituída por um formalismo reformulado, posteriormente ao advento da corrente antiformalística, pela reflexão estabelecida por Hans Kelsen.

A transformação da cadeira de Filosofia do Direito em Introdução à Ciência do Direito indica claramente que o discurso jurídico nacional recebia os ventos da dogmática jurídica, que sopraram inicialmente com força decisiva no Direito Civil, mas que agora pareciam mesmo hegemonizar-se. A cadeira de Direito Penal nessa metade da década de trinta também já abandonava a influência decisiva do positivismo criminológico, o que pode mesmo indicar que a renovação do quadro docente por que passava o curso de Direito implicava o ingresso de novas ideias, que marcava o discurso jurídico nacional.

No entanto, as mencionadas significativas alterações do programa não foram suficientes para excluir totalmente o viés naturalístico da disciplina, já que mesmo posteriormente à aposentadoria de Benjamin Lins, em 1942, o ensino na cadeira de Introdução à Ciência do Direito continuaria marcado por explicações naturalísticas da sociedade, reservando espaço muito pequeno a explicações relacionadas ao direito positivo ou à técnica jurídica. Isso porque o professor que assumirá a cadeira ao longo da década de 40 simplesmente adotava, com pequenas alterações, os programas elaborados por Benjamin Lins. Com efeito, Antônio Martins Franco, que como já mencionado é integrante do primeiro grupo de professores do curso de Direito, será responsável pela disciplina de Introdução à Ciência do Direito até o ano de 1951, sendo aposentado no ano seguinte.

No ano de 1952, então, o programa de ensino é elaborado pelo professor Ulysses de Melo e Silva. Fica evidente no programa a autonomia dada à Ciência do Direito (considerada como uma ciência normativa) em contraposição às ciências reputadas especulativas. O objeto da Ciência do Direito é a lógica jurídica. Faz-se referência à negação da Ciência Jurídica por Kirchmann, por exemplo, mas a atenção dos estudos da cadeira não está na conceituação da Ciência Jurídica em perspectiva naturalística (que pretenda colocar a ciência do direito ao lado das demais ciências pautadas no modelo das ciências naturais), mas sim nos conceitos jurídicos, nas fontes do Direito, no “sujeito de direitos”, nas relações jurídicas[28].

Parece que somente então, com a aposentadoria de Antônio Martins Franco e com a assunção da cátedra por Ulysses de Melo e Sila, é que se pode considerar a perspectiva naturalística, a concepção da Ciência do Direito como uma ciência positiva-naturalista, fora dos conteúdos ministrados não só na cadeira de Introdução à Ciência do Direito (último reduto de uma orientação dos estudos jurídicos que marca os primeiros anos de ensino), mas do próprio ensino jurídico ministrado na (então) Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná[29].

2. 3 Direito civil: OS REFLEXOS da codificação civil no ensino da Faculdade de Direito do Paraná

A investigação sobre o Direito Civil nos albores da FDUP apresenta-se bastante oportuna, uma vez que o momento de criação do curso jurídico paranaense praticamente corresponde ao da edição do primeiro Código Civil nacional, o que revela um problema historiográfico-jurídico bastante instigante, na medida em que permite a busca pelas nuanças de como foi sentida pelos “paranaenses” a tão esperada e desejada, nacionalmente, modernização jurídica do Direito Civil[30].

Esse momento afigura-se de grande relevância para o Direito Civil nacional, já que traduz a opção da nação brasileira pelo modelo codicista moderno e, de maneira mais ou menos intensa, de todas as suas implicações necessárias, dentre as quais, um novo modo de entender a relação entre poder político e Direito e um novo modo de conceber e realizar a produção do Direito, algo bem distinto do que ocorria no momento anterior, em que, além de existir uma pluralidade de fontes, não havia uma hierarquia entre elas.

E é justamente em meio à implementação de uma nova cultura jurídica, agora codificada, que dá o curso de Direito da UP os primeiros passos, os quais certamente foram tocados por essa importante ruptura no âmbito do Direito Civil, peculiaridade esta que foi levada em consideração para a opção de eleger a disciplina de Direito Civil como uma das cadeiras a serem estudas.

O presente tópico, assim, buscará analisar a relação dos civilistas integrantes da “primeira geração” de professores[31] com a codificação civil nacional e os reflexos para o ensino jurídico.

A alvitrada abordagem do Direito Civil e da relação dos professores e do ensino jurídico paranaenses com a codificação de 1916 se dará por meio da análise de três aspectos que parecem apropriados para tanto. O primeiro deles trata da relação desses professores com o formalismo que decorre da opção nacional pela forma Código, vale dizer, num primeiro momento será investigado em que medida eles se apegaram estritamente ao Código como guia de suas atuações no ensino, independente de ele corresponder ao que acontecia de fato ou da sua efetiva observância pelos membros da sociedade. Aspecto este que parece estar intimamente relacionado à verificação da ideia que eles nutriam acerca da própria codificação.

Num segundo momento, buscar-se-á constatar até que ponto os civilistas sustentavam uma visão estreita acerca da codificação e até que ponto as questões antiformalistas, que já brotavam na Europa continental desde as últimas décadas do século XIX, foram conhecidas pelos, ou se circulavam entre os professores, assim como se havia por parte deles aceitação ou recusa das mesmas. Por outro lado, tentar-se-á perceber se esses mesmos civilistas paranaenses, no tocante ao ensino que ministravam, já difundiam os ventos novos, críticos, em relação à agoniante codificação moderna, que se pretende perene e completa.

Por fim, uma terceira perspectiva acerca da temática da codificação em solo paranaense será a relacionada à questão social. Ou seja, será verificado em que medida a questão social, que brota da realidade vivida, implica uma correlata apreciação e abordagem pelos professores de Direito Civil. Ademais, tentar-se-á verificar se também no Paraná as questões sociais, que se impõem no início do século, passaram ao largo das preocupações dos civilistas.

 

2.4 Direito Civil e codificação civil nacional: reflexos da nova ordem jurídica codificada no ensino da FDUP nos seus albores

A partir do estudo de fontes primárias, especialmente dos programas de ensino e do livro de registro de consultas à biblioteca da FDUP, buscou-se delinear algo sobre como os civilistas paranaenses se relacionaram com a nova Codificação Civil.

A ordem das matérias ministradas na cadeira de Direito Civil da FDUP em 1913 – quando da vigência da liberdade de ensino, em que não havia a obrigatoriedade quanto às disciplinas e seus programas seguirem um conteúdo pré-determinado – não foi a do ainda projeto do Código Civil brasileiro. Essa situação se altera, entretanto, no ano seguinte, visto que já em 1914 a ordem das matérias de Direito Civil é orientada pela contida no Código Civil, prestes a ser promulgado: passando a Parte Geral e o Direito de Família para o primeiro ano da disciplina (e segundo do curso) e o Direito das Obrigações para o terceiro ano da disciplina (e quarto do curso).

A sequência adotada a partir de 1914 pela FDUP, que foi a mesma do Projeto do Código Civil de 1916, a partir de 1915, através da Reforma Maximiliano[32], passou a ser obrigatória, permanecendo até 1931, quando da posterior Reforma Francisco Campos.

A ordem das matérias de Direito Civil a serem ensinadas na FDUP a partir de 1914 (e no Brasil em geral a partir de 1915), passa a ostentar uma sensível inclinação à positividade do Código. Sendo possível afirmar, portanto, que o ensino do Direito Civil nacional, a partir de 1915, é, pois, guiado pela diretriz codificadora, no que diz respeito à ordem estabelecida no Código. Mas, muito embora houvesse a obrigatoriedade de ser seguida a ordem legal, não havia um direcionamento (sequer institucional, no caso da FDUP), quanto aos pontos a serem abordados no programa, nem mesmo quanto à adoção de uma determinada obra ou compêndio (como chegou a ser obrigatório no período imperial). A única exigência que havia na FDUP era a de que os programas apresentados pelos professores catedráticos fossem aprovados pela Congregação[33].

Entre os anos de 1916 e 1926 foi encontrado apenas um grupo de programas de ensino da FDUP, os quais pelo que os indícios indicam parecem ser de 1919[34]. A partir desses programas percebe-se o emprego generalizado dos termos do Código Civil de 1916, bem como a correspondente sequência de itens tais quais os títulos, capítulos e sessões da nova legislação civil. A anterior inclinação dos programas da FDUP de 1914 e 1915 à eleição de temas e tópicos tratados pelo Projeto Bevilaqua, pela doutrina que o comentava, ou mesmo pelos livros de doutrina do próprio redator do projeto, que já apontava para um ensino submisso à mentalidade codificadora e sistemática do Direito Civil, passa agora a se debruçar na positividade prevista no recém-promulgado Código Civil[35].

Foram localizados ainda três programas de Direito Civil da década de 1920, dois do ano de 1927 e um de 1928, os quais são suficientes para demonstrar que o apego à positividade do Código como elemento principal dos programas de ensino e o eventual desprezo em relação a pontos concentrados em questões concretas é renitente nesse período.

A partir da década de 1930 se percebem algumas alterações no ensino do Direito Civil, o que também se reflete na Faculdade paranaense. De um lado há uma série de novidades estabelecidas nacionalmente com a Reforma Francisco Campos[36] que, dentre outras coisas, modifica a grade curricular. E, no âmbito interno, percebem-se nos programas de Manoel de Oliveira Franco alguns pontos que enfrentam questões de interesse social e nos de Affonso Alves de Camargo um olhar, ainda que tímido, voltado não apenas para a lei, mas também para a opinião da doutrina.

O programa apresentado, em 1934, por Manoel de Oliveira Franco inaugura aparentes novidades no âmbito do Direito das Obrigações[37]. Após a abordagem dos conhecidos temas atinentes à chamada Parte Geral, abre seu programa de Obrigações tal qual o de Vicente Rao da FDSP, anunciando as “Restrições ao princípio da liberdade contratual. Doutrinas modernas relativas à finalidade social do direito privado.”Inclui ainda entre as causas geradoras das obrigações “O risco como causa das obrigações: a doutrina de Duguit”,bem como no tocante às obrigações decorrentes de atos ilícitos, “O abuso do direito como causa de responsabilidade civil.”E, por fim, no tratamento do risco como causa da obrigação, “Acidente do e no trabalho. Noção. Legislação pátria. Seus efeitos” [38].

Nesse particular, interessante ainda notar que até 1931, data do programa de Vicente Rao, ou 1934, data do programa de Manoel de Oliveira Franco, embora já houvesse no Brasil algumas leis trabalhistas, não havia ainda uma disciplina própria para o Direito do Trabalho[39], motivo pelo qual parece bastante interessante a introdução desses assuntos no programa de Direito Civil, cujo tópico relativo ao contrato de “locação de serviços” regulamentava timidamente as questões que envolviam o trabalhador e seu tomador de serviços, considerando ambos abstratamente livres e iguais, já que dotados das mesmas faculdades mentais (que a regulamentação da capacidade civil proporcionava) para contratar.

O programa de Affonso Camargo de 1935, também afeto ao Direito das Obrigações, muito embora siga a ordem das matérias contidas na lei, denotando que parte dela como fonte maior do Direito Civil, demonstra um ligeiro desapego ao padrão de programas que se limita tão somente a copiar os exatos termos do Código. Camargo procura, em alguns pontos específicos, levantar questões acerca do tratamento legal, críticas, comparação com o regramento de outros países ou até mesmo comentar a opinião de civilistas, citando em algumas passagens expressamente Clóvis Bevilaqua e Eduardo Espinola[40]. É preciso que se diga, porém, que o programa de Camargo não anuncia a chamada, por Manoel de Oliveira Franco e Vicente Rao (em São Paulo), “finalidade social do direito privado”, dando um ar de continuísmo dos dogmas maiores do direito obrigacional calcado nas abstrações de fundo, temperado com a discussão doutrinária e as normas de outros ordenamentos.

Mas, a despeito dessas tímidas aberturas dos programas de Manoel de Oliveira Franco e de Affonso Camargo[41], ainda na década de 1930 e de 1940 é possível verificar que a maior parte dos programas paranaenses[42] limita-se à reprodução dos assuntos tratados pelo Código Civil, como que denotando um continuísmo do extremo apego à positividade do Código[43].

Por outro lado, foi possível perceber através do estudo dos programas de Direito Civil de São Paulo e de Recife que os “paranaenses” se deixaram influenciar pelos “modelos” das faculdades tradicionais (especialmente FDR e FDSP). Particularidade esta que parece poder ser explicada pelo fato de os professores da FDUP terem se formado naqueles centros de ensino jurídico, e de terem os idealizadores da UP, quando do planejamento de sua criação, visitado algumas dessas faculdades para estudar as suas bases, visto serem instituições oficiais. Além disso, há registros de que os programas das disciplinas das faculdades imperiais e de outras mais recentes também circulavam pela Biblioteca da FDUP, o que permitia aos professores da casa estarem em dia com os seus ensinamentos.

Mas, muito embora não seja possível afirmar com certeza que tenham os paranaenses sofrido influência mais direta de uma ou de outra instituição (já que se nota que tanto os oriundos de Recife, quanto os de São Paulo, ostentavam ensinamentos colhidos em suas academias de formação), não se pode negar que no caso do Direito Civil a influência maior parece ter sido de São Paulo. Isso se deve ao fato de que apenas um dos civilistas, da primeira geração de professores da casa, bacharelou-se no Recife (Vieira de Alencar), sendo, assim, minoria entre seus pares.

É evidente ainda que a existência de certa similitude em relação à abordagem dos programas de Recife, São Paulo e do Paraná, deve-se, sobretudo, à revolução causada pela Codificação Civil nacional seja no plano das fontes, seja na maneira como os juristas passam a se relacionar com o Direito, assim como às Reformas do Ensino de 1915 (Maximiliano) e de 1931 (Francisco Campos), que focam o ensino jurídico, cada qual a sua maneira, à positividade legal e a um proceder formalista.

Percebe-se, assim, em grande parte dos programas analisados (mesmo nos de São Paulo e de Recife) do período correspondente à primeira geração de civilistas da FDUP, a reprodução da visão estreita, individualista e patrimonialista do Direito Civil, cunhada pela codificação brasileira. Essa visão parece ter sido assimilada pelos professores que foram formados e tomados pelo pensamento hegemônico de então (período em que o formalismo foi em grande medida empregado em razão das codificações e sistematizações do Direito Civil moderno).

Essa atitude do ensino voltado para o culto ao Código como devotada fonte do Direito Civil foi também sentida no estudo das consultas à biblioteca. No caso do Direito Civil entre 1917 e 1923[44] as obras mais consultadas foram as mais conhecidas do período pré-codificação[45] e que procuravam expor os conteúdos de forma sistemática (como Lafayette Rodrigues, Martinho Garcez e Lacerda de Almeida), assim como as posteriores obras de doutrina que seguem a linha do Código Civil, seja em forma de comentário da própria lei, seja em forma de texto, acompanhando, porém, as matérias tratadas por ele.

Não causa surpresa que o redator do Projeto do Código Civil de 1916 seja o mais concorrido, sendo muito consultadas as suas obras: Em defeza do Código Civil, Direito das Obrigações, Direito de Família, Direito das Successões e ainda Direito Civil. As demais principais doutrinas acessadas são o Manual do Código Civil e o Código Civil do Paulo de Lacerda; Direito das Cousas de Lafayette Rodrigues; Direito das Cousas e Obrigações de Lacerda de Almeida; Obrigações de Carvalho de Mendonça e Direito de Família e Direito Civil de Martinho Garcez. Entre os estrangeiros apenas duas obras foram acessadas por mais de uma pessoa e em dois anos distintos: Obrigações de Pothier e Instituzione di Diritto Civile de Gianturco [46].

Assim, também o conjunto das obras acessadas é um indício que, somado aos demais fatores trabalhados, denota que o ensino do Direito Civil, levado a cabo pelos civilistas da primeira geração de professores da FDUP, estava em harmonia com o estudo das normas positivas plasmadas no Código.

A devoção ao Código, percebida pelo estudo dos programas e pelo levantamento das obras mais acessadas, não deixa, todavia, de gerar certa curiosidade, uma vez que tanto a “realidade subjacente” já acusava naquele período o descompasso do modelo codicista com as necessidades da vida concreta[47], quanto já circulavam obras[48] em que era possível sentir o combate ao extremo apego às máximas formalistas. Não há nos programas da FDUP qualquer ressalva acerca dessas vozes vivificantes do Direito Civil (tão somente algumas poucas nuanças tiradas do programa paulista no tocante à finalidade social do direito privado, na seara do direito obrigacional, o que, como visto, não parece ter sido original). Mesmo a partir de meados da década de 1930, quando também a Constituição Federal de 1934 (e posteriormente a “Polaca” de 1937) adota visíveis traços sociais[49], na esteira da Constituição de Weimar de 1919, especialmente no tocante à limitação do direito de propriedade, é quase nula a repercussão de uma visão mais crítica nos programas de Direito Civil, que continuaram, em grande medida, a se pautar nas formulações burguesas oitocentistas depositadas no Código.

 

2.5 O formalismo jurídico e a indiferença às doutrinas antiformalistas

É evidente que a menção expressa a tópicos tratados pelo Código Civil nos programas e a quase total ausência de itens críticos, ou que denotassem uma visão voltada para questões concretas, que brotassem da vida social e que eventualmente não estivessem formalmente previstas no Código, não pode, por si só, denotar que se expressasse mediante o ensino a visão de que o Direito Civil era agora apenas aquele previsto no Código e este encarado como única fonte do Direito. Mas, a despeito desta evidência, outras constatações parecem apontar para um agir formalista por parte dos civilistas “paranaenses”.

Isso porque, apesar de o ensino ser mais complexo do que os simples pontos do programa, é preciso lembrar que estes servem de guia para o que será tratado em sala de aula e em outras atividades a exemplo das avaliações[50]. Tanto é verdade que há a aprovação dos programas pela Congregação, assim como outras atividades de ensino, como os exames finais que são guiados por eles[51].

Ademais, ainda que seja evidente que esses professores responsáveis pela elaboração dos programas poderiam ter apresentado tópicos enxutos e com os termos do Código e na sala de aula ter exposto eventuais temas que já emergiam numa contestação à clausura do Código, este não parece ter sido o perfil dos civilistas “paranaenses” que guiaram o ensino até meados da década de 1940. Ao menos pelo que se depreende de seus escritos pessoais, verifica-se um expressivo apego às formulações legais abstratas, bem como uma visão individualista do Direito Civil.

Há fortes indícios de uma ampla aceitação entre os professores de Direito Civil da FDUP da codificação como meio para a modernização do direito privado nacional, a qual já era professada no Brasil, no final do Império e início da República, pelas principais figuras que estavam à frente do ensino jurídico (a exemplo de Clóvis Bevilaqua) ou veiculada através das obras utilizadas no meio jurídico (academia e vida prática).

Da análise dos escritos dos professores de Direito Civil do período estudado, Vieira de Alencar, Pamphilo d’Assumpção, Affonso Camargo e Antonio Martins Franco, percebe-se a clara aceitação da codificação como símbolo da modernização jurídica, de uma sociedade civilizada e moderna.

Pamphilo d’Assumpção representa um autêntico civilista da “idade do Código” que age preso às concepções cunhadas pela lei, tentando incessantemente não ultrapassar, em suas interpretações, os limites por ela estabelecidos. Pamphilo procura sempre dar uma interpretação restrita à lei, sem qualquer margem a outras abordagens ou contribuições externas a ela, pensamento este, como já referido, formalista e típico de um contexto em que a lei estatal, e agora no âmbito do Direito Civil o Código, possui uma centralidade obtusa[52].

Affonso Camargo também ostenta esse tipo de pensamento, que credita ao direito estatal a legitimação para ser a fonte maior do Direito, assim como entende a sistematização das normas em um todo lógico consectária do progresso jurídico alcançado na modernidade. Em suas mensagens de Governo, na qualidade de Presidente da Província do Paraná, deixa transparecer a opinião sobre o Código Civil, recém-promulgado, sendo exemplo a que segue: “A execução do Código Civil, monumento jurídico que muito enaltece a nossa cultura de povo civilisado, veio libertar-nos de leis antiquadas, que não mais estavam de accordo com as nossas necessidades e progresso, decorrendo desse facto, a necessidade que temos de confeccionar o nosso Código de Processo Civil” [53].

Affonso Camargo entende que o “edifício jurídico” da modernidade, especialmente representado pelo Código de Napoleão, é o grau mais elevado de evolução do direito positivo e representa o progresso. Não é menos evidente ainda a sua considerável preocupação com este edifício jurídico, que, para ele, cunhou a democracia, o liberalismo e o individualismo. E chega a recomendar a seus alunos que em seu agir profissional não se esqueçam dessas conquistas em prol do homem e as façam ser consideradas, visto que, no seu entender, o movimento solidarista estava gerando consequências nefastas às grandes construções jurídicas da humanidade[54].

Antonio Martins Franco apresenta um posicionamento manifestamente liberal, bastante parecido com o de Affonso Camargo, no que diz respeito à preocupação com o futuro das “conquistas civilizacionais”. Em suas palavras de paraninfo de 1937[55], Franco encara o Código Civil como repositório dos ideários do liberalismo, incorrendo em pensamento parecido com o de Camargo, na defesa de uma intervenção mínima nos interesses individuais, o que também nele imprime a dificuldade de compreensão e assimilação dos ideários sociais.

É evidente que posicionamentos como estes, de Camargo e de Franco, não permitiriam uma visão aberta e receptiva dos movimentos contestatórios do individualismo jurídico, em especial no que diz respeito a uma visão mais social do Direito Civil, que procurava superar as concepções abstratas tanto do contrato quanto da propriedade (“institutos cardinais da constituição burguesa”). Essas circunstâncias devem ser sopesadas ao se tentar recuperar a abordagem do Direito Civil nos primeiros anos da FDUP, a fim de que não seja desconsiderada a força do discurso de saber hegemônico que paira sobre o grupo institucional.

Dessa forma, parece difícil que, ainda que tenham sido trabalhadas no ensino, as novas agitações sociais tenham sido vistas com bons olhos[56].

Outro elemento importante para a constatação da inclinação desses homens à codificação civil é a manifestação conjunta da FDUP em prol da comemoração do aniversário do Código Civil. Pouco antes dos vinte e cinco anos do Código Civil brasileiro, os professores da FDUP, a fim de comemorar “condignamente o transcurso desse jubileu” do “maior monumento de codificação jurídica da América”, enviaram uma carta ao Diretor da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, Pedro Calmon, apelando pelos seus sentimentos patrióticos, no sentido de sugerir fosse comemorado o primeiro quarto de século do Código Civil “data que marca uma grande etapa vencida da evolução ascensional da civilização brasileira” [57].

Assim, a análise das pistas encontradas acerca do pensamento desses homens demonstra estarem eles bastante embebidos pelo ideário que marcou as codificações privadas modernas, do qual o Código Civil brasileiro não escapou.

Dessa forma, parece possível, caso sejam os programas de ensino tomados em conjunto com outros elementos que denotam o espectro do pensamento ostentado pelos seus autores (os quais se revelaram homens de seu tempo), acusar um ensino do Direito Civil bastante apegado aos pilares do direito burguês, pautados na tutela da propriedade privada individual e do contrato[58] e nas correspondentes abstrações que se distanciam do direito vivo, percebido nas experiências concretas.

A esses professores de Direito Civil da primeira turma, que adentra na FDUP em 1912, somaram-se outros no período estudado. Além do já mencionado professor Manoel de Oliveira Franco, que apresenta programas bastante parecidos com o padrão voltado ao Código, salvo a trabalhada adoção de alguns programas paulistas mais atentos às alterações de ordem social no campo do Direito das Obrigações e de cuja autoria não foram localizados outros escritos, tem-se até meados da década de 1940 mais dois nomes, levando-se em consideração as fontes encontradas.

Um deles é o de José de Alencar Ramos Piedade, que ingressou como professor substituto de Direito Civil por meio de concurso, e que dá mostra de um pensamento bastante destacado em relação ao de seus pares.

Além de sua tese intitulada Damno Moral ser bastante elucidativa de seu pensamento e de suas leituras, ela permite a conclusão de que já nos primeiros anos da FDUP, aos quais segue a promulgação do Código Civil de 1916, era possível sentir, ainda que com força quase nula e isolada, as novas agitações antiformalistas.

Piedade cultua os naturalistas, nomeadamente Cimbali e Ardigò[59]. Além disso, reconhece o movimento de reintegração do elemento individual no social, assim como defende a necessária evolução das normas objetivas, a fim de que haja o acompanhar das novas exigências sociais. De modo que, muito embora defenda a adoção do Código Civil, por considerá-lo indispensável, ante a confusa situação operada pela vigência das Ordenações ainda no século XX, acreditando que ele estabelecerá “regras objetivas à aplicabilidade do direito”, salienta que ele deverá realizar o direito “de acordo com as necessidades sociais” [60].

Indubitavelmente a tese de Piedade demonstra que as correntes antiformalistas eram de conhecimento dos professores e diretores da FDUP, já que foi apresentada e aprovada. Referida tese é ainda de vanguarda em relação aos seus colegas, demonstrando, assim, que este homem não apenas esteve atento ao que se passava fora do país, como procurou refletir acerca das transformações que eram pregadas, deixando-se assimilar pelas novas ideias que buscavam o resgate do elemento social nas relações interprivadas. Atitude que efetivamente não foi percebida entre os demais integrantes do primeiro grupo de civilistas paranaenses.

Outro aspecto de sua tese que o deixa em dia com as experiências concretas é o tratamento que reserva à necessidade de maior regulamentação pelo governo brasileiro das questões que envolviam os acidentes do e no trabalho[61].

Sua tese não permite, porém, a conclusão de que este professor teria influenciado sobremaneira o ensino na FDUP, ou ainda que esse tipo de ideias circulasse ou tivesse força na instituição. Isso porque, pelo que as fontes indicam, a partir de 1920 Piedade não mais pertence aos quadros de professores da FDUP, permanecendo os outros quatro, Vieira de Alencar, Affonso Camargo, Manoel de Oliveira Franco e Antonio Martins Franco[62].

Há nova notícia de concurso para o cargo de professor de Direito Civil tão somente em 1945, cujo aprovado foi Altino Portugal Soares Pereira, bacharel pela FDUP em 1939 e exemplo de aluno que foi formado pelo pensamento padrão acerca da codificação. Em sua tese de ingresso para o quadro docente da FDUP apresenta um estudo eminentemente técnico e endojurídico.

Seu escrito tem como objetivo sustentar a adoção de um critério único para o estabelecimento da capacidade, uma vez que no período havia para os diversos ramos do Direito positivo nacional diferentes parâmetros para o início da capacidade da pessoa natural. Altino Portugal demonstra uma atitude bastante preocupada com a interpretação dos termos da lei civil e das demais leis que trazem diferentes exigências de idade para a prática de diferentes atos. Seu estudo se limita a expressar comentários às leis secas, bem como a trazer a contribuição da doutrina que também comenta determinados artigos de lei. Há apenas duas passagens em que ele menciona as definições de Direito de Pedro Lessa e Tobias Barreto, adotando o evolucionismo no Direito (ideia que circulava na FDUP, como visto quando da análise da disciplina de Filosofia do Direito).

Em outros escritos desse mesmo professor, porém já da década de 1960, também é possível notar a adoção do evolucionismo, no sentido de justificar as alterações legais, ainda que, a essa sua posição, se some um manifesto conservadorismo no tocante à defesa dos direitos individuais[63].

Acredita-se que esse seu pensamento, que também pode ter sido reproduzido nas salas de aulas, tenha sido decorrente de sua formação na FDUP.

Daí porque é possível verificar, grosso modo, que até os fins da década de 1940 não parece ter se alterado muito o quadro de ideias que se instalaram na FDUP desde os seus primórdios, no que diz respeito à defesa das concepções abstratas, individualistas e patrimonialistas cunhadas pelo Direito Civil burguês e ao seu correspondente proceder formalista. Sequer os ventos vivificantes do Direito Civil, cunhados pelos franceses Raymond Saleilles e François Gèny[64], foram sentidos nesses primeiros 33 anos de Direito Civil da FDUP. Não há qualquer menção desses nomes nos programas de Direito Civil, de Filosofia do Direito ou de Introdução à Ciência do Direito, como ocorre em São Paulo, a partir de 1941[65]. Também, guardadas as limitações dessa pesquisa, que se deu sobretudo com base em fontes documentais e escritas, não foram percebidas aparições desses doutrinadores em outros escritos. O que não significa, contudo, que os civilistas “paranaenses” não tenham tido contato com essas concepções contestadoras do Código, como parece terem tido com a irreverente posição contestadora do já mencionado italiano Enrico Cimbali. Isso porque é inegável que, apesar de serem reduzidas em número, foram adquiridas e circulavam obras jurídicas que colocavam em evidência os ensinamentos de Saleilles, num primeiro momento, como a de Bevilaqua intitulada Estudos Jurídicos, de 1916, e de Gèny, num segundo momento, como é exemplo a obra de Spencer Vampré, Interpretação do Código Civil, de 1919.

Não devendo ser olvidado, entretanto, como explica Grossi para o caso italiano, que, mesmo nos países onde foram concebidas, essas ideias não obtiveram imediata aceitação pela maior parte da comunidade jurídica[66]. Mesmo assim, não se pode negar a elas o papel de terem provocado uma agitação nos mitos e crenças até então dominantes nos países de Direito Civil codificado, em especial nos europeus.

2.6 O ensino do Direito Civil no Paraná e a questão social

Neste tópico derradeiro serão trabalhados alguns traços da relação dos civilistas “paranaenses” com a questão social que se coloca a partir das primeiras décadas do século XX, e que também se fazem presentes em Curitiba.

Como pode ser percebido nos itens acima, a declaração dos direitos sociais pela Constituição de 1934 não representou a alçada dos valores sociais no âmbito do Direito Civil, cujo caminhar foi sempre acanhado e moroso, não perceptível na maior parte dos programas acadêmicos, nem na massiva produção dos professores de Direito Civil do período estudado (1912-1945).

Quiçá mais interessante do que isso seja o fato de, no período anterior à Constituição de 1934, Curitiba também ter sido palco de agitações sociais que se fortaleceram e que culminaram na greve geral de 1917[67]. Também ela teve contato com o descontentamento civil (operariado) em relação ao ordenamento jurídico vigente. Lembre-se, a propósito, de que até 1936 as questões atinentes à relação que envolvia empregador e empregado eram reservadas ao contrato de locação de serviços, e, assim, deveriam ser tratadas na seara do Direito Civil[68]. Porém, sequer este movimento, que tirou a paz da pacata Curitiba do final da década de 1910[69] e que brotou da vida concreta, numa demonstração do descompasso existente entre a lei civil e a realidade social vivida, foi considerado pelos professores quando de suas manifestações acadêmicas, como que denotando a indiferença com que a questão social, que se impunha e que lutava para ser “vista e enxergada”, era tratada por eles.

Assim como Fonseca e Galeb aduzem que os operários foram suprimidos dos textos de cronistas tradicionais da história paranaense do período, também a questão social contestadora das máximas jurídicas burguesas, que regulamentavam as relações contratuais de “locação de serviços” (relações estas que consideravam os sujeitos livres e iguais para contratar, como formalmente o eram), foi ignorada pelos professores de Direito Civil da FDUP. Como já verificado, pela análise dos programas de ensino, dos escritos e manifestações dos professores, não parece que o desacerto entre a igualdade formal e a realidade, que impunha aos trabalhadores uma série de sujeições, abusos e arbitrariedades, tenha sido debatido pelo grupo “paranaense”.

Nesse passo, não pode ser olvidada a forte relação havida entre o grupo de professores da FDUP, especialmente os da primeira turma, e a conhecida atmosfera política pautada pelo governo das oligarquias locais, própria da República Velha. Cabe anotar o fato de que muitos dos professores da FDUP transitaram por diversos cargos públicos e políticos, especialmente num momento em que mesmo os membros da magistratura e do Ministério Público eram nomeados pelo Presidente do Estado[70].

Não é de causar espanto, assim, que em 1917, quando as agitações sociais eram ainda consideradas “casos de polícia”, o Presidente do Estado, Affonso Camargo, que comandou a repressão ao movimento, era um dos professores da FDUP. O próprio Chefe de Polícia da Capital de então, Lindolpho Pessoa, um ano depois, ou seja, em 1918, passa a integrar os quadros de professores da FDUP, através de nomeação pela Congregação de Direito.

Essa situação demonstra não apenas a mencionada forte ligação dos professores da FDUP com a elite política, social e econômica de então, mas também a dificuldade que estes tipos de relações impunham ao nascimento de uma visão mais afeta às questões sociais e menos impregnada pelos valores burgueses assentados no Código Civil de 1916 (valores estes que tanto importavam para a satisfatória situação das elites locais) dentro da instituição de ensino jurídico paranaense.

Um exemplo relacionado ao campo da produção jurídica, bastante esclarecedor dessa situação de “olhos fechados” e suficiente para demonstrar como havia certa rejeição ao elemento social pelos civilistas locais, é o texto de Pamphilo d’Assumpção intitulado Accidentes no Trabalho. Pamphilo tenta demonstrar por que a jurisprudência tem aplicado de forma errônea o Decreto nº 3.724 de 15 de janeiro de 1919, que tratava do assunto. Segundo o mencionado professor: “Parece-me que as decisões judiciaes proferidas no fôro desta capital em acções de accidentes no trabalho, quando não se verifica a morte ou incapacidade total permanente da victima têm tomado um critério que não está de accordo com os institutos da lei” [71]. Ainda, ao final de sua argumentação, Pamphilo deixa transparecer algo de suas convicções pessoais, o que inclusive parece bem próprio da atmosfera em que vive: “É um assumpto que merece ser convenientemente estudado principalmente quando se trata de uma lei de exceção, que obriga o patrão a indemnisar damnos pelos quaes não é culpado”. Passagem essa que revela como para ele a responsabilidade sem culpa do empregador parece ser algo anacrônico, uma exceção, motivo pelo qual a sua melhor interpretação deve ser a restritiva.

3. Direito Criminal: entre o crime e o criminoso

O Direito Penal é ramo do saber jurídico ao qual historicamente foi dada uma notória centralidade política (nomeadamente na Itália do século XIX, cujo pensamento tanto influenciou o brasileiro) e que teve uma relação bastante próxima com as ciências sociais (marcadas que estavam, ao longo do século XIX, pelos métodos das ciências naturais), e que no Brasil foi considerado uma das principais portas de entrada de todo o ideário cientificista, na virada do século XIX para o XX[72]. Nesses termos, observar o conteúdo ministrado na cadeira de Direito Penal significa – além de também analisar o que se entendia por Ciência do Direito neste âmbito – buscar perceber o influxo da modernização do saber jurídico no âmbito nacional através de uma perspectiva privilegiada. Por outro lado, o Direito Penal é espaço adequado à percepção dos contornos do processo de recepção desse ideário cientificista no seio da tradição letrada brasileira, tradição esta a que está intrinsecamente ligado o bacharelismo liberal.

As aulas de Direito Penal tiveram início na UP apenas no ano de 1915, com a inauguração da primeira parte da cadeira. A disciplina estava, de fato, subdividia em duas partes: a primeira era destinada ao ensino da parte geral do direito penal, da sociologia criminal e da criminologia, como indica a primeira grade curricular do curso, ao passo que a segunda – para a qual esteve designado o poeta Emiliano Perneta, que terminou por não dar aulas efetivamente – abrangia o estudo dos sistemas penitenciários e do direito penal militar. O responsável pelas primeiras aulas tanto da primeira quanto da segunda parte da cadeira de Direito Penal, bem como pela elaboração dos respectivos primeiros programas de ensino, foi o então professor substituto Antônio Martins Franco, que da primeira parte da disciplina se encarregará até o ingresso no corpo docente de Ulisses Falcão Vieira, advogado militante em Curitiba formado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1911.

3.1 O positivismo criminológico e o Direito Penal “clássico”: o embate entre as escolas penais

A rápida referência à organização do programa de ensino da cadeira de Direito Penal para o ano de 1915 já indica o perfil que a disciplina teve ao logo de quase 20 anos: uma grande ênfase no positivismo criminológico[73]. Os pontos referentes à Sociologia Criminal e à Criminologia (componentes da segunda parte do programa) absorviam mais da metade de todos os pontos que seriam estudados na disciplina. O programa arranca, no primeiro tópico intitulado Parte Geral, da análise dos institutos tratados pelo Código Penal de 1890, para depois passar, em tópico intitulado Sociologia Criminal, ao estudo do crime a partir da evolução das teorias que trataram da individualização da pena. Trata-se então especificamente sobre a tradicional questão do livre arbítrio e do determinismo, e ainda das formas de individualização da pena (legal, judiciária e administrativa). Por fim, dando-se ao terceiro tópico do programa o título de Criminologia, ingressa-se no estudo da classificação dos criminosos.

A ampla inclusão das questões atinentes ao positivismo criminológico no programa de ensino elaborado por Antônio Martins Franco, ao invés de indicar o estabelecimento de um determinado conteúdo para os estudos do Direito Penal a partir da influência trazida de São Paulo, parece refletir um discurso mais amplo, que nesse momento já circulava e era aceito por muitos juristas brasileiros[74].

Se por um lado, assim, o primeiro programa da disciplina de Direito Penal revela uma inclusão no ensino de questões próprias à escola positiva, por outro, entretanto, não indica que o autor desse programa fosse um entusiasta dessas então novas ideias penais, como será o professor Ulisses Vieira Falcão (como se verá), graduado no Rio de Janeiro. Assim, Martins Franco parecia ser menos um entusiasta dos postulados da Nova Escola Penal que um simples tradutor das ideias mais em voga no discurso jurídico nacional.

Um dos traços mais característicos do ensino do Direito Penal na virada do século XIX para o século XX foi a notável atenção dispensada ao chamado embate entre as escolas penais. Essa especificidade do ensino do Direito Penal no Brasil foi reproduzida no ensino ministrado na FDUP. Sintomático, nesse sentido, é a reiterada consulta pelos alunos do terceiro ano do curso da obra do professor da Faculdade de Direito da Bahia Antonio Moniz Sodré de Aragão intitulada As tres escolas penaes: estudo comparativo[75].

Outro manual reiteradamente consultado pelos alunos do terceiro ano era aquele elaborado por Fernando Nery, intitulado Lições de Direito Criminal[76]. O autor se declara filiado à escola positiva – “que nos cativou pela lógica de suas razões a posteriori, pelos argumentos fortíssimo, irrefragáveis, dos fatos veridicamente comprovados de visu em um sem número de experiências”[77]. Sendo a sociedade um organismo, tem ela o direito de defender-se, de conservar-se; considerar-se como fundamento da responsabilidade penal o livre arbítrio significa, então, desrespeitar a defesa social e propalar a impunidade. A consequência é que entendido que o crime não decorre da livre vontade do indivíduo, e que dadas as características próprias desse indivíduo o seu simples viver em sociedade impõem a necessidade de intervenção estatal, a pena de prisão deixa de ser o único meio de defesa (já que para o caso do criminoso nato seria inócua), surgindo como principais meios de repressão os substitutivos penais de que fala Ferri[78].

Segundo Nery, a pena apresenta um poder muito pequeno contra os crimes, e isso porque ela (dada a sua própria natureza) combate apenas um dos aspectos dos seus aspectos, que é o seu aspecto psicológico. O crime, nesse sentido, é um fenômeno complexo que envolve questões de cunho físico (mostrados pela antropologia) e sociais (como o clima, os costumes, aos aumentos da população e da produção agrícola, as crises econômicas e políticas)[79]. O fato é que a pena de prisão é ineficaz na grande maioria dos casos[80].

É importante ter em mente, nesse ponto, que a difusão do positivismo criminológico no país foi impulsionada não apenas pelo labor dos entusiastas e sectários declarados das ideias de Cesare Lombroso (1835-1909[81]), Enrico Ferri (1856-1929[82]) e Raffaele Garofalo (1851-1934[83]), mas também pelos próprios juristas que embora críticos do excessos dessas teorias não deixavam de as analisar exaustivamente, o que explica, em grande medida, o amplo espaço dado a essas questões no âmbito do ensino. Esse é o caso, por exemplo, das aulas ministradas pelo magistrado José da Costa Lima Drummond na Faculdade Livre de Ciências Jurídica e Sociais do Rio de Janeiro, preleções a que tiverem acesso os alunos da FDUP por meio da transcrição realizada por um aluno, chamado Paulo Domingues Vianna, que deu origem ao livro intitulado Direito Criminal, integrante do primeiro acervo da biblioteca da UP e objeto de reiteradas consultas pelos estudantes do curso jurídico de Curitiba[84].

Em suas aulas o professor Lima Drummond dedicava notável atenção ao embate entre as escolas penais, expondo suas ideias principais, e de sua análise restava expressa a recusa dos principais postulados da escola positiva, a qual no ponto de vista do autor teria restado vencida naquele exaustivo embate catalisado pelas proposições na chamada Terza Scuola[85].

Sublinhando o fato de que aos deterministas a liberdade se afigura como um indeterminismo do agir (uma liberdade de fazer), considera Lima Drummond que entender a conduta humana como independente de motivos (ou seja, uma “liberdade de querer independentemente de todas as condições externas e internas, tendo o seu único fundamento no poder da vontade”) significa uma negação da própria dignidade humana, já que anula aquela faculdade que guia os homens nos atos da vida: a razão[86].

Também era reiteradamente frequentada pelos alunos do terceiro ano do curso de Direito a obra Estudos de Direito Criminal do professor Lima Drummond[87]. Escrito de autoria do próprio magistrado, condensava artigos publicados em jornais que circularam na cidade do Rio de Janeiro e elaborados a partir de uma dupla preocupação, esclarecida pelo autor no prólogo da obra: tratava-se de perceber a “contribuição trazida à ciência do Direito Penal pela aplicação do método experimental e de observação aos fenômenos jurídicos, com que ela se preocupa e do intuito de acentuar e limitar o verdadeiro alcance de semelhante contribuição, em certo assunto peculiares à mesma ciência”, bem como contribuir ao debate que então se travava a respeito da reforma do Código Penal de 1890[88]. Nesses artigos, Lima Drummond se dedicava ao estudo de diversos institutos do Direito Penal. Claro está que seu labor incide sobre os institutos legais do Direito Penal; pensa-os a partir das questões postas pelo positivismo criminológico, mas sem afirmar em momento algum a ausência de fundamentos da tradição jurídica combatida pelos prosélitos na nova escola, a necessidade de substituição de um sistema por outro, ou mesmo a necessidade de uma ampla reforma. Ao contrário, critica os excessos das propostas de sectários da nova escola (como Viveiros de Castro, reiteradamente criticado por Lima Drummond), mantendo-se rigorosamente dentro de um discurso formado sobre a construção de institutos jurídicos.

Lima Drummond parece, assim, um claro representante daqueles juristas que diante da grande recepção das ideias da criminologia positiva no seio do discurso jurídico nacional não se deixam levar pelo entusiasmo daqueles que as professavam, mantendo-se fiel a uma postura que pretendia dar uma resposta que fosse eminentemente jurídica ao fenômeno do crime, sem, entretanto, deixar de considerar as críticas lançadas à tradição liberal, construída sobre alicerce metafísico, a partir de uma perspectiva que se pretendia amparada nos avanços alcançados pelas ciências do homem.

Uma notável atenção dispensada à contraposição entre as propostas de Ciência Penal, fundamentos e finalidade do Direito de punir estabelecidas pelas “escolas”, paralelamente a uma dedicação a temas próprios da tradição liberal. Ou, em outras palavras, uma notável abertura à crítica que não significa o abandono da tradição combatida. É inegável que a primeira impressão de um ensino do Direito Penal nesses moldes comporta um aparente paradoxo: como é possível que orientações em grande medida opostas possam conviver sem maiores problemas dentro do discurso jurídico? De fato, o naturalismo da criminologia positivista coloca como uma das grandes questões para o pensamento jurídico as consequências de uma irrestrita aceitação do determinismo bio-psicológico em termos de responsabilidade penal; as pretensões da escola positiva têm origem especialmente na negação do livre-arbítrio que fundamenta a responsabilidade moral da tradição liberal. E nessa discussão, travada principalmente entre médicos e juristas, os teóricos do Direito tiveram de se situar a respeito do determinismo no âmbito penal, o que teve de necessariamente acontecer entre as necessidades próprias à norma e aquelas outras próprias à Lei.

3.2 O livre arbítrio e o determinismo: a interação entre paradigmas do saber penal apenas aparentemente excludentes

Segundo o sociólogo da USP Marcos César Alvarez, o patente ecletismo dos juristas brasileiros (que normalmente tendiam “a compatibilizar as diversas hipóteses que caracterizariam a anormalidade dos criminosos”) quanto ao discurso jurídico-penal (presente, como visto, nos manuais consultados pelos alunos da UP) não deve ser interpretado como perfeita expressão da “ambiguidade da cultura brasileira”, como já defendido por alguns, mas sim como fruto da necessidade de “administrar as desigualdades presentes na sociedade brasileira”, como “uma resposta à necessidade inevitável de articular os novos dispositivos normalizadores [recepcionados a partir da atenção dada às discussões travadas na Europa] ao campo da lei”[89]. Se muitos juristas brasileiros da época tenderam à afirmação de um sistema que fosse plenamente positivista (no sentido de que o crime fosse penalizado estritamente a partir dos ditames científicos), o fizeram necessariamente abstraindo as dificuldades concretas trazidas por uma tal posição. E mesmo a promulgação do Código Penal de 1890, “estruturado segundo os velhos ideais da escola clássica, levou mesmo os juristas mais radicais na defesa das ideias criminológicas a inevitavelmente conciliar as diferentes orientações penais”[90]. De maneira que apenas com a total alocação do agente do discurso no campo da norma é que “seria possível defender com perfeita coerência uma legislação plenamente positiva”, não sendo, dessa forma, por acaso que o personagem que com mais afinco intentou submeter a legislação aos postulados da Nova Escola tenha sido não um jurista, mas sim um médico: o maranhense Nina Rodrigues[91].

Essas considerações feitas por Marcos Cesar Álvarez sobre a composição praticada pelos juristas brasileiros entre duas formas de exercício do poder, sobre essa tendência predominante do discurso jurídico nacional de conciliar os argumentos das escolas penais, lançam uma primeira luz sobre o fato de que nos estudos jurídico-penais realizados pelos estudantes do curso de Direito de Curitiba fossem frequentadas tanto obras claramente entusiastas das novas ideias propostas pelo positivismo criminológico quanto obras que declaradamente recusavam os seus excessos: o ingresso do ideário criminológico positivista não significou uma efetiva substituição entre discursos-jurídico punitivos distintos[92]; os institutos e as diretrizes da tradição penal liberal não foram abandonados pelos juristas em razão da sua superação por um discurso que se estabeleceu – continuando a ser ensinados e aplicados na prática – mas sobretudo repensados a partir das críticas estabelecidas pela crítica positivista.

É nesse mesmo sentido que a penalista da Universidade Federal de Santa Catarina Vera Regina Pereira de Andrade – embora não analisando especificamente o discurso jurídico nacional, mas a própria construção da dogmática penal a partir de determinadas matrizes (dentre eles, a tradição penal liberal e o positivismo criminológico) – considera que o embate entre as escolas penais significou uma “redefinição do direito penal e do controle do delito” (possibilitando uma maior intervenção estatal com finalidades normalizadoras), e que, ao final, o classicismo e o positivismo penal representam orientações complementares, de maneira que a luta teórica entre as escolas “se dissolve na prática do controle penal”[93].

É por essa razão que, ainda segundo Vera Andrade, a legislação elaborada no século XX englobará tanto a “fundamentação preventivo-especial e da necessidade de individualização da pena” quanto “as concepções herdadas do classicismo, como a legalidade, o retribucionismo e a responsabilidade moral”[94].

E se, com essas considerações em mente, retoma-se, por exemplo, o manual a que acima foi feito referência, elaborado por Fernando Nery, algumas conclusões podem ser tiradas: é inegável que referido autor se colocava com grande fervor em prol de muitos dos postulados da Nova Escola Penal; a leitura de seu manual revela, entretanto e para além do discurso em grande medida propagandístico, uma subjacente tendência de conciliação entre os institutos do Direito Penal clássico e aqueles propostos a partir dos postulados do positivismo criminológico. Não se vê em sua obra uma tentativa de plena substituição de um sistema por outro, mas sim de inclusão no sistema classicista de institutos próprios ao direito penal positivista, bem como a reforma de outros tidos por incompatíveis com os postulados da ciência.

O ingresso de Ulisses Falcão Vieira para o corpo docente da FDUP, em 1918, não alterou a feição inicial do ensino do Direito Penal; ao contrário, parece mesmo que esse conhecido advogado paranaense deu ainda mais força à prevalência do discurso penal criminológico-positivista[95]. Em lição inaugural referente ao ano letivo de 1928, Falcão Vieira apresentava a nova escola penal com todo aquele entusiasmo de uma nova doutrina que – ainda em luta para firmar-se e apesar da resistência dos que nela vislumbram uma não querida “revolução” – embora não tenha a pretensão de extinguir o estudo do crime, enquanto categoria eminentemente jurídica, representa a superação de um paradigma jurídico (constituído pela chamada escola clássica) defeituoso e de horizonte restrito, bem como caminho inevitável, que passa por uma total reestruturação do sistema punitivo, à extinção das fontes da criminalidade[96].

Falcão Vieira está absolutamente imerso na discussão entre as escolas penais. O programa de ensino referente ao ano de 1924 para a cadeira de Direito Penal indica uma grande preocupação quanto ao determinismo e ao livre arbítrio. O início do programa coloca o Direito Penal entre as ciências sociais, acentuando a sua relação especialmente com a Sociologia. Analisa-se a tradicional distinção entre o livre arbítrio e o determinismo, indicando “as contradições do livre arbítrio com as leis da causalidade”. Embora o estudo do Direito Penal positivo não esteja, absolutamente, ausente, a análise do crime é fortemente reconduzido ao estudo do criminoso, destinando-se notável espaço ao estudo crítico dos tipos criminosos[97].

O fato é que sob a regência de Ulisses Falcão Vieira o ensino do Direito Penal na FDP seguiu o perfil atribuído inicialmente por Antônio Martins Franco, aumentando o tom em favor das ideias da criminologia positivista. E mesmo dedicando grande parte do seu programa ao estudo dos institutos jurídicos penais, a “presença metodológica”[98] da criminologia positivista é que dava a marca do ensino ministrado, marca essa que permaneceria decisiva até pelo menos a primeira metade da década de 30.

No ano de 1936 realiza-se concurso para o preenchimento do cargo de docente livre de Direito Penal, concurso por meio do qual ingressa na instituição como professor o advogado Laertes de Macedo Munhoz[99]. Infelizmente não foi possível encontrar as provas por ele escritas; mas se por um lado não se poderá, assim, ter acesso ao conteúdo daquilo que foi escrito e falado por Laertes Munhoz naquela ocasião, por outro é certo que o seu ingresso para o corpo docente da Faculdade de Direito, nomeadamente a partir do momento em que assume ele as aulas de Direito Penal, marcará ao menos o início do pleno retorno do crime ao centro dos estudos jurídicos, bem como o deslocamento da questão das escolas penais ao campo das meras notícias históricas.

3.3 A tecnicização do saber jurídico-penal: o crime e a retomada do espaço perdido

Paralelamente ao forte influxo do positivismo criminológico, as primeiras décadas do século XX também serão marcadas no Brasil pela recepção da Dogmática Penal, especialmente (mais uma vez) através da leitura dos penalistas italianos[100]. A reforma do Código Penal, que seria levada a cabo em 1940, ocorre no influxo dessa tecnicização do Direito Penal, que tem como ponto fulcral a alocação do texto legal como objeto exclusivo de estudos do penalista, o que, para além dessa notável mudança epistemológica, significa também uma mudança do próprio perfil do jurista[101].

A tecnicização do Direito Penal também traria substanciais alterações ao ensino jurídico. Um tecnicista como Nelson Hungria promove fortes críticas ao modelo de ensino até então dominante, colocando como alvo principal a instituição do Júri[102].

No ano de 1934 o professor Clotario de Macedo Portugal é quem elabora o programa de ensino para a primeira parte da cadeira de Direito Penal, destinada ao estudo da parte geral. Diferentemente de Falcão Vieira, Clotario de Macedo Portugal não parecia um entusiasta do positivismo criminológico. Embora do programa de 1934 constem tópicos destinados ao estudo das ideias de Lombroso e Ferri, bem como da classificação dos criminosos, resta claro que não há uma grande atenção dispensada a esses pontos, como nos programas elaborados por Falcão Vieira. O aparecimento das três escolas penais passa a ser objeto de referências mais contidas, que parecem mesmo se perder em meio aos tópicos destinados ao estudo das categorias técnicas do Direito Penal, a partir do Código Penal. Com isso não se quer dizer que Clotário de Macedo Portugal estivesse a superar o embate entre as escolas penais em razão de outras influências ou de uma descrença no ideário positivista. Quer-se apenas sublinhar que esse jurista, formado pela FDSP em 1905, não se doava à criminologia positivista como Ulisses Vieira.

Laertes Macedo Munhoz, que já integrava o corpo docente desde o ano de 1937, com a aprovação no concurso realizado no ano de 1936, tampouco era um entusiasta das teorias do positivismo criminológico; ao contrário, era jurista que apontava para uma superação da ênfase no paradigma positivista[103].

Em 1943, livre docente desde 1937, Laertes Munhoz elabora o programa de ensino para a primeira parte da cadeira de Direito Penal, mesmo ano em que presta concurso para a cátedra dessa mesma disciplina[104]. A questão das escolas penais é alocada, ao início do programa, no tópico intitulado “introdução” como parte do processo de desenvolvimento histórico do Direito Penal. Como ponto de chegada desse processo histórico está o chamado “movimento neoclássico”, dentro do qual Macedo Munhoz inclui aqueles autores (como Arturo Rocco, Vicenzo Manzini, Eduardo Massari) responsáveis pelo desenvolvimento da nova orientação do Direito Penal que Mario Sbriccoli chamou de civilística penal. Uma nova orientação que transpondo à Ciência do Direito Penal o método próprio ao Direito Civil – percorrendo assim o mesmo caminho anteriormente trilhado pelo Direito Público na Itália, por obra de V. E. Orlando, com os olhos postos na experiência alemã – trataria de afirmar a autonomia da Ciência Jurídica Penal, a própria juridicidade dessa ciência[105].

A Dogmática Penal será herdeira da antiga tradição liberal, preocupada em estabelecer os limites objetivos e subjetivos da imputação da responsabilidade penal a partir da lei[106] e no entorno da conduta do autor do fato-crime (objetiva e subjetivamente considerada), e não em torno à pessoa do autor. Seguirá na linha de uma consideração do crime como “ente jurídico”, porém redefinindo-o a partir de exigências metódicas, figurando o fato-crime como núcleo central da preocupação do penalista. A Dogmática Penal recoloca “a teoria do delito no marco de um ‘sistema’ conceitual e vinculando-o ao princípio da legalidade, procurará conferir-lhe um estatuto de cientificidade, operando o trânsito, por assim dizer, da legalidade à legalidade cientificamente decodificada”[107].

O programa de 1943 para a parte geral da disciplina de Direito Penal é elaborado por Laertes Munhoz, mesmo antes desse então livre docente prestar o concurso para catedrático, o que talvez decorra da necessidade de que o ensino dessa parte da disciplina fosse assumido por alguém que estivesse mais apto a tratar do Código Penal recentemente promulgado. O fato é que o programa elaborado por Laertes Munhoz traz profundas diferenças com relação àqueles elaborados por Ulisses Falcão Vieira e Clotario de Macedo Portugal: além daquela inicial explicação sobre o desenvolvimento histórico do Direito Penal que trata o embate entre as escolas apenas de passagem, e de uma inicial (e importante) definição do Direito Penal como Ciência Jurídica, é notável e inédita a atenção dispensada à conceituação do crime e o trabalho de análise e sistematização dos elementos que o compõem[108].

Analisando um escrito de Laertes Munhoz[109], sobressai o fato de esse autor colocar-se como objeto de reflexão e trabalho uma construção sistemática dos institutos consagrados no Código Penal. Resolvendo nós que decorrem do pressuposto da existência de um liame subjetivo entre o elemento volitivo do autor e fato delituoso por este causado, molda categorias, analisa os elementos que compõem o conceito de crime, tudo de modo a poder conciliá-los e encaixá-los dentre de um conceito de delito que é eminentemente técnico-jurídico.

No referido programa de ensino elaborado para o ano de 1943, Laertes Munhoz faz preceder ao exame analítico do crime aquela exposição da evolução histórica do Direito Penal; também uma já referida definição do Direito Penal e da Ciência Penal e suas relações com outras disciplinas e ciências; e ainda uma análise da aplicação da lei penal, que é onde se trata do princípio da legalidade. Trata-se daquela “dimensão propedêutica”[110] que antecede a análise do crime e que povoa os manuais de Direito Penal. Essa estrutura do programa elaborado por Laertes Munhoz representa, enfim, o definitivo ingresso da Dogmática Penal no seio do ensino jurídico ministrado na FDUP.

[1] O presente artigo apresenta alguns dos resultados obtidos pelos autores nas dissertações de mestrado apresentadas, em maio de 2011, junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, intituladas Ciência e Ensino na Cultura Jurídica Paranaense: Direito Penal e Filosofia do Direito no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Paraná (1913-1953) (http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080//dspace/handle/1884/26068; acesso em 27/02/2012) e Ciência, ensino e código: lentes, elites e direito civil nos albores da Faculdade de Direito do Paraná (1912-1945) (http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080//dspace/handle/1884/26128; acesso em 27/02/2012). Nessa versão, esse texto foi publicado em FONSECA, Ricardo Marcelo (org). Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: Juruá, 2012, págs. 235/279.

[2] Para maiores informações sobre a fundação da Universidade do Paraná, bem como sobre as anteriores tentativas de estabelecer-se um curso superior no Paraná, ver WACHOWICZ, Ruy. Universidade do Mate: História da UFPR. Curitiba: APUFPR, 1983.

[3] A Reforma Maximiliano, dentre outros objetivos, inaugurou uma série de exigências para que se pudessem criar “livremente” estabelecimentos de ensino superior (a exemplo de população mínima de 100.000 habitantes na cidade em que seria instalado e uma fiscalização mais apurada por parte do governo federal). Segundo a exposição de motivos, as exigências se impunham a fim de se evitar mais consequências maléficas, tais quais as decorrentes das anteriores reformas pautadas no ideário da liberdade do ensino, como a formação de um número elevado e desnecessário de bacharéis, ou ainda a negociação de diplomas. PRIMITIVO, Moacyr. A Instrução e a República. 4º vol. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942, p. 81-118.

[4] O estudo do ensino jurídico ministrado contou como um grupo básico de fontes (para além das revistas acadêmicas, artigos, livros jurídicos, teses de cátedra e livre-docências apresentadas à instituição, entre outros), que constitui uma espécie de tripé para o presente trabalho: são elas as grades curriculares dos 40 primeiros anos de funcionamento do Curso de Direito, os programas de ensino das disciplinas e os manuais mais utilizados pelo corpo discente como amparo para os estudos jurídicos realizados. Os programas de ensino das disciplinas analisadas constituem o fio condutor da análise da cultura jurídica difundida pela instituição, cultura esta cujo delineamento depende, por outro lado, das obras jurídicas consultadas pelos estudantes ao longo da carreira jurídica. A escolha pelos programas de ensino justifica-se por constituírem eles documentos elementares à sequência do curso e das avaliações, ou mesmo porque neles restam expressas, em certa medida, as “escolhas” dos professores. Por outro lado, o registro dos livros consultados na biblioteca permite uma aferição de quais as obras mais consultadas, constituindo, assim, fonte histórica do discurso jurídico então circulante. A despeito de poder ser acusada certa arbitrariedade dos alunos quanto à escolha das obras para os estudos necessários à complementação do ensino, dois “filtros” parecem contribuir para a sua significativa redução: em primeiro lugar, o da própria instituição, que acaba por ofertar apenas as obras por ela adquiridas (as obras doadas não foram consideradas); e, em segundo lugar, a consulta de determinados autores por diversos alunos e em diferentes anos, situação esta que fortalece a tese de opção (ou indicação) por parte do professor por esta ou aquela doutrina.

[5] Que também poderia ser chamada de Enciclopédia Jurídica, denominação esta adotada tanto no Paraná, quanto em São Paulo e em Recife. FACULDADE DE DIREITO DE RECIFE. Programa de ensino da 1ª cadeira da 1ª série, Encyclopédia Juridica, Laurindo Leão, anno de 1913. Recife: Imprensa Industrial, 1913; e FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO. Programa de ensino para o anno de 1911 da 1ª cadeira do 1º anno, Encyclopédia Juridica, apresentado pelo professor ordinário João Arruda. São Paulo: Typ. Siqueira, Nagel & C. 1911.

[6] Lembre-se que para o positivismo sociológico em geral o objetivo da ciência deve ser a identificação (a partir da observação empírica) das permanências, das leis que presidem as relações e o desenvolvimento sociais, o que se dá através do método indutivo, o qual – partindo do dado empírico, positivo que são essas concretas relações – possibilita que se chegue através de um processo de continua abstração e generalização a estas leis, aos princípios hauridos pela ciência. Nesse contexto, a Ciência Jurídica (é dizer, aquele saber específico que pretende conhecer o direito cientificamente) nada mais é do que o ramo do conhecimento que se deve ocupar dessas leis, dessas permanências que, ao final, devem informar o legislador (que se vale do método teleológico) na confecção da norma positiva. A Ciência Jurídica se ocupa não do efêmero direito positivo estatal, mas do conjunto dos fatos sociais, das relações mantidas em sociedade, de cuja observação se podem perceber (por meio daquela generalização e abstração antes referidas) as leis e os princípios que regem esses fenômenos, leis e princípios que serão então frutos do labor do cientista do direito. Esses fatos e relações podem ser organizados a partir de suas especificidades próprias, de modo que a Ciência do Direito (ela mesma uma subdivisão daquela ciência geral que é a Sociologia) seria subdividida em tantos ramos quantos fossem os conjuntos de fatos e relações agrupados a partir de especificidades comuns. Ou seja, o Direito Privado nada mais é do que o ramo do Direito composto pelos fatos e relações privados (por exemplo, aquelas relações que envolvem os indivíduos em um contrato mercantil); ao passo que o Direito Público é o ramo do Direito composto pelos fatos e relações públicas (por exemplo, a relação que envolve o particular e o Estado). Nessa perspectiva empírico-naturalista, o direito positivo (que aqui não é aquele posto pelo Estado) sobressai em sua complexa unidade (unidade de princípios e leis), e a Ciência do Direito também encontra unidade a partir do método (o indutivo) (conferir, nesse sentido: LESSA, Pedro. Philosofia do Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916).

[7] ARRUDA, João. Filosofia do Direito. 3ª ed. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1942. p. 84 e ss.

[8] COELHO, Ludgero. Elementos da Enciclopédia do Direito. Rio de Janeiro: Officinas, 1912.

[9] CARVALHO, José Lopes Pereira de Carvalho. Enciclopédia Jurídica (Manual do Estudante). Rio de Janeiro, 1911.

[10] PINTO, Antonio Augusto de Serpa. Noções de Enciclopédia do Direito. Niterói: prelo particular do autor, 1913.

[11] PICARD, Edmond. O Direito Puro. Lisboa: Antiga Casa Bertand, s/d. p. 5-28.

[12] Logo no ano de 1915 a Lei Maximiliano reinclui no currículo dos cursos de Direito a cadeira de Filosofia do Direito.

[13] É a questão posta por Kirchmann, que considerando a mutabilidade das leis positivas, entende que o direito – este fruto da atuação do Estado – não está isento de elementos contingentes e arbitrários, dependendo de circunstâncias de tempo e lugar. Para Kirchmann, a contingência do objeto torna contingente a própria ciência jurídica (“três palavras modificadoras do legislador, e inteiras bibliotecas tornam-se papel rasgado”), de modo que concebendo como ciência apenas aqueles saberes que se valham dos métodos próprios às ciências naturais, conclui pela impossibilidade de atribuir-se valor científico à ciência jurídica. FASSÓ, Guido. Storia della filosofia del diritto. III. Ottocento e Novecento. Edizione aggiornata a cura di Carla Faralli. 4ª ed. Editori Laterza, 2003. p. 163.

[14] Na exposição de motivos da Reforma de 1915, Carlos Maximiliano consignava que cumpria “entronizar de novo a filosofia do direito. Só a filosofia explica os fundamentos do direito, a sua razão de existir, exalta o espírito sedento de saber, apresenta-lhe a ciência de Ihering e Puchta como um ideal excelso, digno de sacrifícios voluntários e dedicações ardentes. A enciclopédia encara-o de modo positivo, terra a terra, como uma fonte de resultados práticos imediatos”. MOACYR, Primitivo.Op. Cit. p. 94.

[15] IHERING, Rudolf von. A Evolução do Direito. Lisboa: Bertrand, s/d.

[16] UNIVERSIDADE DO PARANÀ. Livro de Consultantes. In: Arquivo Inativo do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná.

[17] ROMÉRO, Silvio. Ensaios de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Cunha & Irmão – Editores, 1895.

[18] Certo é que ao longo desses quase 30 anos de docência, o professor Benjamin Lins de Albuquerque foi por diversas vezes substituído, em razão das licenças requeridas. A sua presença à frente da cadeira de Filosofia do Direito dará, entretanto, o perfil dos estudos jurídicos atinentes a essa cadeira.

[19] UNIVERSIDADE DO PARANÁ. Programas do Curso de Sciencias Juridicas e Sociaes. 1º ano. Curityba: Typ. Max Roesner, 1915. É importante notar, nesse ponto, que por força da liberdade de ensino então vigente, no curso de direito da UP faziam parte do conteúdo do ensino da cadeira de Enciclopédia Jurídica (1913) tanto pontos específicos da disciplina quanto outros referentes à Filosofia do Direito (o programa de ensino elaborado para o ano de 1913 era dividido em duas partes: uma destinada à Enciclopédia Jurídica e outro à Filosofia do Direito), de modo que em 1914 foi simplesmente mantido o programa do ano anterior.

[20] FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO. Programas de ensino do curso de direito referente aos anos 1900-1928, 1930-1945. In: Acervo da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

[21] A obra de Rudolf von Ihering é marcada pelo abandono, por esse jurista, do método da “jurisprudência dos conceitos”, do qual Ihering foi um dos grandes expoentes, em direção a uma teoria do direito marcada pelo naturalismo. Com efeito. Por isso é possível falar-se de um “primeiro” e de um “segundo” Ihering: o “primeiro”, autor do O Espirito do Direito Romano, voltar-se-á posteriormente contra o formalismo (considerado um falso positivismo), propugnando uma virada ao positivismo focado na “realidade das coisas”, escrevendo então obras como O fim do direito e A luta pelo direito (FASSÓ, G. Op. Cit. p. 189-193). Esse “segundo” Ihering é considerado o responsável pela darwinisação do direito.

[22] MACHADO NETO, A. L. História das Ideias Jurídicas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1969.

[23] SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 186-187.

[24] FASSÒ. Op. cit. p. 183 e 184.

[25] Embora os registros de consultas à biblioteca mostrem que a partir da década de 30 obras como a de Pedro Lessa ou as de Ihering já não interessavam tanto aos alunos (sendo pouco consultadas), e que, ainda, novas obras passem a ser objeto de consulta, como, por exemplo, a Introdução à Ciência do Direito de Hermes Lima (manual que dedica grande atenção ao direito positivo, a temas próprios ao positivismo jurídico, e aborda especificamente questões próprias ao pensamento de Hans Kelsen), não parece que isso se deva a uma virada do pensamento de Benjamin Lins em direção ao formalismo jurídico, podendo-se mesmo cogitar que o programa do ano de 1935 não tenha sido por ele elaborado. E isso não só porque causa espanto uma tão grande modificação do programa, mas também porque os programas dos anos subsequentes atestam um absoluto retorno dos temas naturalistas e um tratamento das questões formalistas com uma menor intimidade do que aquela demonstrada em 1935. É possível que esse interesse dos alunos por uma obra como a de Hermes Lima seja fruto da indicação de professores que eventualmente tenham substituído Benjamin Lins, ou mesmo decorrência de questões suscitadas em outras disciplinas, como o Direito Civil; mas as aulas de Benjamin Lins nas disciplinas de Filosofia do Direito e Introdução à Ciência do Direito foram mais decisivas na configuração que essas cadeiras tiveram nos primeiros 30 anos de ensino.

[26] A declarada orientação da Reforma Francisco Campos é no sentido de uma profissionalização do direito. Conforme afirmado por Campos na Exposição de Motivos da reforma, “[o] curso de bacharelado foi organizado atendendo-se a que ele se destina à finalidade de ordem puramente profissional, isto é, que o seu objetivo é a formação de práticos do direito. Da sua seriação foram, portanto, excluídas todas as cadeiras que, por sua feição puramente doutrinária ou cultural, constituem antes disciplinas de aperfeiçoamento ou de alta cultura do que matérias básicas e fundamentais a uma boa e sólida formação profissional”. Especificamente quanto à justificação da substituição da cadeira de Filosofia do Direito pela de Introdução à Ciência do Direito, Campos afirma que esta foi alocada no primeiro ano do curso “como indispensável propedêutica ao ensino dos diversos ramos do Direito […] [Colocadas], assim, no primeiro ano a Introdução à Ciência do Direito e a Economia Política, o espírito recebe a ação preparatória imprescindível para abordar o estudo do direito positivo, de que ambos constituem pressupostos necessários e indispensáveis”. (cf. CAMPOS, Francisco. Op. cit. p. 401).

[27] FASSÒ. Op. Cit. p. 274 e ss. É importante notar que embora tanto a cadeira de Enciclopédia Jurídica quando à de Introdução à Ciência do Direito pretendessem-se disciplina introdutórias, ambas partiam de bases notadamente diversas, de uma “positividade” que não se se confundia: a Enciclopédia Jurídica é uma disciplina pensada a partir de uma filosofia do direito que elege como dados positivos de análise os fatos jurídicos, fatos concretos a partir dos quais determinados princípios gerais serão reconhecidos e que, devidamente organizados, percebidos em suas múltiplas dependências e na sua decorrência de um tronco comum, darão origem aos vários ramos do direito que devem ser percebidos em sua unidade e organicidade. Ao passo que a Introdução à Ciência do Direito parte de outro dado positivo: a norma posta, o direito positivo. No primeiro caso, tem-se como pano de fundo que informa a concepção da disciplina o positivismo sociológico, enquanto no segundo caso figura como pressuposto um positivismo eminentemente jurídico, formalístico.

[28] A tese apresentada por Ulysses de Mello e Silva, no ano de 1952, no concurso para o cargo de catedrático da cadeira de Introdução à Ciência do Direito mostra que Mello e Silva já está totalmente fora do discurso naturalista que marca o pensamento de Benjamin Lins. Esse novo professor da instituição demonstra atenção à história da filosofia, elencando as perspectivas epistemológicas que considera consolidadas ao longo do tempo e indicando aquela positivo-naturalística como apenas uma (e já superada) delas. Pensa o direito como um fenômeno cultural composto por elementos materiais e formais, concebendo a norma jurídica como uma relação intersubjetiva objetivada que atende à realização de determinados valores que variam de acordo com as épocas e contextos concretos, de modo que se o justo é o fim colimado pelo Direito enquanto fenômeno cultural, o conteúdo do justo é algo que depende do tempo e do espaço em que ele é pensado. Basta mencionar, para os fins deste trabalho, que Mello Silva se mostra ao menos mais aberto às discussões filosóficas sobre o Direito, concebendo-o em perspectiva formal a partir da noção de relação jurídica. SILVA, Ulysses de Mello e. A Justiça e o Direito. Curitiba, 1952.

[29] E nesse mesmo passo, cabe então a pergunta: pode-se afirmar também que nesse mesmo momento finalmente se consolida a transmutação da Filosofia do Direito (renitente mesmo posteriormente a 1931 por força da perspectiva adotada pelos professores) em mera antessala da dogmática jurídica, em mera disciplina propedêutica destinada a fornecer os instrumentos necessários ao adequado manejo da técnica ensinada nas demais cadeiras?

Embora seja essa a ideia de fundo da disciplina surgida em 1931 com a Reforma Francisco Campos, e ainda que muitos dos conteúdos condizentes com esse núcleo de sentido da disciplina sejam ministrados na cadeira regida por Mello e Silva, parece que mais uma vez os estreitos limites estabelecidos por uma determinada positividade reinante (agora uma positividade normativa) não contiveram uma renitente filosofia pulsante, embora agora os conteúdos dessa filosofia sejam outros (absolutamente distintos àqueles ministrados pelos dois professores integrantes da primeira geração). As preocupações epistemológicas de Mello e Silva tenderão sempre a extrapolar os limites da disciplina de que estava ele encarregado.

[30] O Direito Civil brasileiro possui uma história particularíssima no que diz respeito ao seu processo de codificação. Mesmo ante a separação política de Portugal e a adoção de uma roupagem liberalizante através da Constituição de 1824, a previsão constitucional relativa à codificação civil não foi levada a efeito ainda no século XIX. Muito embora a onda codificadora, fortemente presente na Europa ocidental, tenha contaminado muitos dos países da América Latina recém-independentes, os quais pretendiam modernizar-se e modernizar o Direito, de acordo com o modelo das nações “cultas e civilizadas”, o Brasil não traçou o mesmo caminho, acabando por adotar um Código Civil tão somente em 1916. A ausência de um Código Civil ainda no século XIX, ao contrário do que ocorria com a quase totalidade dos países de tradição jurídica marcada pela influência da Europa continental, não representa, contudo, a falta de uma mentalidade codificadora e de uma pretensão “modernizadora” do Direito Civil brasileiro, o que concorre para a constatação de que a codificação civil de 1916 não foi tão impactante, justamente por ser o século XIX um século de tensão e de transição. É notório que, mesmo ante a vigência de um Direito “culto” de “Antigo Regime”, o ideário codificador, enquanto símbolo de civilidade e de modernização, já circulava com bastante força no Brasil, especialmente a partir da metade do século XIX. Não apenas o trabalho de Augusto Teixeira de Freitas na sua Consolidação das Leis Civis é emblemático neste sentido, até porque revela a intenção do governo de preparar a codificação civil brasileira, como também a literatura jurídica mais expressiva do período manifesta que a Codificação era tida como algo urgente e inevitável. De qualquer maneira, é importante perceber que com ou sem um Código em vigor, a mentalidade sistematizadora já circulava e era tida como algo necessário. Ainda no século XIX, entretanto, essa ideia não desconsidera a vigência da pluralidade de fontes então em vigor. Tratava-se mais de um trabalho da doutrina em busca da modernização por meio da forma ostentada por algumas das nações “cultas e civilizadas”, que considera a multiplicidade de fontes de então. Não deve ser olvidada ainda a influência do jusracionalismo operada pelas reformas pombalinas ainda nos fins do século XVIII, que contribuiu sobremaneira para esse quadro. Essa Reforma, sob o intento de reduzir ao máximo o Direito ao direito do Estado, alterou significativamente o plano das fontes do direito letrado e o próprio ensino portugueses, o que consequentemente teve reflexos no Brasil. Mas, a despeito de ter tido uma maior ou menor eficácia o projeto de Pombal, é evidente que o Brasil não ficou infenso às novas formas de conceber o Direito, guiadas pelo racionalismo, as quais, em solo Europeu, culminaram na edição do Código de Napoleão (uma construção sistemática, e tida como fruto da lei estatal, num contexto em que o Estado é colocado como único produtor do Direito). Lembre-se a propósito que o Brasil já vinha modernizando o seu direito por meio de leis esparsas, de maneira que muitas delas foram reproduzidas no conteúdo do Código, a exemplo da regulamentação da propriedade e das ainda recentes modificações no campo do direito de família operadas após a República, de forte influência positivista. Afinal, o século XIX brasileiro é um século de transição, no qual se percebe estar presente, em alguma medida, o culto à forma Código, culto que tão somente se fortalece após a vigência, a partir de 1917, do Código Civil. É preciso reconhecer, entretanto, que é a partir do Código que ocorre uma sensível alteração no plano das fontes e uma novíssima forma de operar com o Direito Civil, agora plasmado, nas suas mais diversas situações, na Lei.

[31] Pertencem à primeira geração de civilistas da FDUP: Manoel Vieira de Alencar, formado pela Faculdade de Direito do Recife (FDR); Pamphilo d’Assumpção, Affonso Camargo, Antonio Martins Franco e Manoel de Oliveira Franco, diplomados na Faculdade de Direito de São Paulo (FDSP); José de Alencar Ramos Piedade, cujo dado de formação não foi localizado; e Altino Portugal Soares Pereira, bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade do Paraná (FDUP). Cabe enfatizar, nesse ponto, que muitos dos mencionados professores trabalharam e/ou lecionaram em outro ramo do Direito, o que era bastante comum nesse período, no qual ainda se observava um perfil cultural de jurista não propriamente marcado pela especialização.

[32] A Reforma Maximiliano (1915), quanto ao currículo do curso de Direito, criou a cadeira de Direito Internacional Privado, bem como determinou que se passasse a lecionar a disciplina de Filosofia do Direito no lugar da antiga Enciclopédia Jurídica. Especificamente no Direito Civil, adotou a ordem do Projeto Bevilaqua, no Direito Comercial determinou que o primeiro ano se estendesse até sociedades, contratos e falências e o direito marítimo fosse reservado ao segundo ano. Por fim, reservou aosegundo ano do Direito Penal a matéria relacionada aos sistemas penitenciários e ao Direito Penal Militar. PRIMITIVO, Moacyr. Op. Cit. p. 81-118.

[33] Conforme o Estatuto da UP de 1914, art. 84, e de 1915, art. 89, 2º, competia aos lentes catedráticos reger a cadeira e organizar anualmente o programa de seu curso, o qual seria submetido à aprovação da Congregação da Faculdade de Direito (composta por todos os lentes catedráticos e substitutos do curso jurídico e do Diretor e Secretários da UP, estes porém não possuíam direito a voto).

[34] Ao que tudo indica, são de 1919, não apenas porque trazem disciplinas do quarto ano do curso, que apenas teve início em 1916, mas também porque os programas não são mais intitulados como sendo da “Universidade do Paraná”, mas agora da “Faculdade de Direito do Paraná”, cabendo lembrar, como antes mencionado, que a Faculdade isolada foi criada com o desmembramento operado na UP em 1918, em razão do não preenchimento pela instituição dos novos critérios exigidos pela Reforma Maximiliano.

[35] A Faculdade de Direito de São Paulo (exemplos são os programas de 1916 de José Ulpiano Pinto de Souza; de 1917, 1920 e 1926 de Manoel Pacheco Prates, que inclusive faz menção expressa aos artigos do Código Civil; de 1918 e de 1919 de A. Januário Pinto Ferraz) e a de Recife (exemplos são os programas de 1916 de Henrique Milet e de Joaquim Guedes Corrêa Filho e de Hersilio Lupercio de Souza da década de 1920) possuem programas bastante parecidos com os paranaenses desse período (entre 1915 e 1930), uma vez que também elas têm agora que seguir a ordem legal, ante os ditames da Reforma Maximiliano, bem como, no tocante aos pontos, por acabarem essas instituições a adotar as diretrizes do Código Civil em seus programas. Por outro lado, a similitude pode ter decorrido do fato de terem tido, os paranaenses, acesso aos programas dessas escolas.

[36] O Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931 (Reforma Francisco Campos), estabelece um currículo mínimo para os cursos de Direito. Institui-se que o ensino do Direito nas faculdades devesse ser dado no curso de bacharelado (5 anos) e doutorado (2 anos). Autoriza-se a Congregação da Faculdade a estabelecer o ensino de outras matérias e aumentar o número de cadeiras, desde que conservasse no primeiro ano do curso de bacharelado o ensino da Introdução à Ciência do Direito e o da Economia Política, bem como que o ensino da parte geral do Direito Civil e da Teoria Geral das Obrigações precedesse o da primeira cadeira de Direito Comercial (art. 30). Especificamente no tocante ao Direito Civil, a exposição de motivos explicita a oportunidade de se acrescer um ano ao estudo do Direito Civil, a fim de que fosse possível abranger todos os institutos jurídicos vigentes. A Reforma Francisco Campos teve como principal escopo organizar o curso de bacharelado a fim de que ele correspondesse a sua finalidade puramente profissional, a qual era tida como desígnio do curso, ou seja, “a formação de práticos do direito”. Não por outro motivo foram excluídas de sua seriação “todas as cadeiras que, por sua feição puramente doutrinária ou cultural, constituem antes disciplinas de aperfeiçoamento ou de alta cultura do que matérias básicas e fundamentaes a uma bôa e sólida formação profissional”. Essa Reforma traduz bem o momento de extremo apego ao direito positivo e às máximas dogmáticas, sendo a substituição da disciplina de Filosofia do Direito pela Introdução à Ciência do Direito, que foi tida como indispensável propedêutica ao ensino dos diversos ramos do direito. Segundo a exposição de motivos: “Collocadas, assim, no primeiro anno a Introducção à Sciencia do Direito e á Economia Politica, o espírito recebe a acção preparatória imprescindível para abordar o estudo do direito positivo, de que ambos constituem pressupostos necessários e indispensáveis.” CAMPOS, Francisco. A reforma do ensino superior no Brasil: exposição de motivos apresentada ao chefe do Governo Provisório pelo sr. Dr. Francisco Campos, ministro da Educação e Saude Publica. In Revista Forense. Volume LVI, Fasciculo 331. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Geraes, 1931, p. 401.

[37] Esse programa de Manoel de Oliveira Franco é idêntico ao programa da FDSP redigido pelo professor Vicente Rao em 1931. Referida constatação instaura dúvida acerca da originalidade das orientações do ensino paranaense, bem como no tocante à qualidade da recepção dessas ideias trazidas de fora. Essa dúvida acerca do grau de desenvolvimento e aceitação das ideias que acentuam um caráter crítico à matéria do Direito das Obrigações é também aguçada pelo fato de ter o professor paranaense suprimido poucas, porém significativas, passagens do programa paulista. Na parte relativa às causas geradoras de obrigações, tendo o risco como causa das obrigações e a doutrina de Duguit, Franco suprimiu a parte final “e legislação civil da Rússia Soviética”; no item relativo ao acidente do e no trabalho, noção e legislação pátria, suprimiu “necessidade de mais ampla legislação de direito privado social sobre a matéria”. Faculdade de Direito de São Paulo. Programa de Direito Civil Obrigações. Apresentado pelo professor Vicente Rao.

[38] Faculdade de Direito do Paraná. Programa de Direito Civil, Parte Geral e Obrigações. Apresentado por Manoel de Oliveira Franco. 1934.

[39] Bercovici salienta que a “Questão Social” não surge em 1930, nem a Revolução de 30 inaugura as legislações trabalhistas no Brasil. É, porém, a partir de 1930 que acelera a sistematização das leis trabalhistas, as quais se alçam à política de Estado, o que culmina com a Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943. BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição da democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na era Vargas (1930-1964). In História do Direito em perspectiva: do antigo regime à modernidade. Ricardo Marcelo Fonseca e Airton Cerqueira Seelaender (orgs.). Curitiba: Juruá, 2008. p.397-398.

Nesse passo, Venancio Filho enfatiza duas alterações substanciais, para os currículos de Direito: em 1936 através da Lei de 8 de Janeiro, cria-se a cadeira de Direito Industrial e Legislação do Trabalho; e em 1940, há o desdobramento, pelo Decreto-lei 2639, de 27 de setembro de 1940, da disciplina de Direito Público e Constitucional em duas: Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional. VENÂNCIO FILHO. Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 310.

[40] Faculdade de Direito do Paraná. Programma de Direito Civil, Obrigações, parte geral. Pelo professor catedrático Affonso Alves de Camargo, 1935.

[41] Desses mesmos professores podem-se citar ainda alguns outros programas localizados. O programa de Contratos em espécie de 1936 de Affonso Camargo menciona, como fez no de Obrigações Parte Geral, a doutrina e legislação estrangeira. Também de sua redação, o programa de Direito das Coisas de 1937, não obstante siga a matéria regulada no Código, trabalha com alguns nomes de doutrinadores a exemplo de Savigny e Ihering quanto à teoria da posse e com a “sábia definição de Toulier” sobre o direito de propriedade. Menciona ainda o tratamento da propriedade pela Constituição Federal, omitindo qualquer comentário acerca da “função social da propriedade”, já constante na Constituição de 1934.

O programa da Parte Geral e Obrigações de 1938 de Manoel de Oliveira Franco é igual ao por ele apresentado em 1934. Também o de Affonso Camargo, Parte Geral e Obrigações primeira parte, é igual ao de 1935, porém com a supressão da parte relativa à legislação do trabalho, muito provavelmente em razão do Direito do Trabalho ter passado a ser disciplina autônoma.

[42] São eles: o de Obrigações de 1935, do professor Vieira de Alencar; o de Sucessões de 1936 de Antonio Martins Franco; o de Direito de Família e Sucessões de 1938, apresentado por Affonso Camargo; o de Contratos de 1938 de Antonio Martins Franco; o de Obrigações de 1939 redigido por Manoel Vieira de Alencar; o de Direito de Família e Sucessões do ano de 1939 também de Manoel Vieira de Alencar.

[43] Alguns programas fazem referência às novas legislações que alteram as matérias tratadas, ou ainda no caso do direito de propriedade, especialmente nos programas de 1940 e 1942 de Vieira de Alencar há a menção expressa no regramento constitucional, em seguida elencam, respectivamente, “o conceito da propriedade perante o nosso direito positivo” e “Conceito da propriedade em face do Código Civil e direito por estes assegurados ao proprietário. Propriedade plena e limitada”. De maneira que se percebe que a “limitação social” da propriedade, inaugurada na Constituição Federal de 1934, parece ter sido considerada, porém não há como saber qual era o tom lecionado em sala, sendo certo que a concepção absoluta é sentida até os dias hodiernos.

Os programas de Affonso Camargo de Coisas (1941) e Parte Geral e Teoria Geral das Obrigações (1943) são muito parecidos com os respectivos de 1937 e 1934. O mesmo é válido para os do Manoel de Oliveira Franco de Contratos em Espécie (1943), muito parecido com o de 1935. Os de Antonio Martins Franco da Parte Geral (1941) e de Contratos (1942) são bastante sucintos, sendo que o primeiro, em seu item 3, trabalha com “Conceito individualista e conceito social do direito.” Não havendo, porém, maiores explicações ou indicações sobre o ponto.

[44] Há registros de consultantes apenas a partir de 1917, tendo sido feito o levantamento dos livros de consultantes até 1923 para ver em que medida as obras consultadas em 1917 continuaram a ser consultadas, a fim de se obter um perfil um pouco mais seguro acerca das obras mais acessadas.

[45] Considerou-se para tanto as obras de juristas brasileiros mencionados por Miguel Reale e Pontes de Miranda como sendo as principais no âmbito do direito civil de então. Miguel Reale menciona Lacerda de Almeida, Carvalho de Mendonça, Paulo de Lacerda, Clóvis Bevilaqua, Eduardo Espindola, Spencer Vampré. REALE, Miguel. 100 anos de Ciência do Direito no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1973, p. 27-28.

Pontes de Miranda destaca, em termos de doutrina no século XIX, Teixeira de Freitas, Lafayette Rodrigues Pereira, Lacerda de Almeida, Clóvis Bevilaqua, Eduardo Espíndola, Martinho Garcez, e conclui, “não chegaram a quinze os bons volumes brasileiros sobre direito civil, publicados antes do Código”. MIRANDA, Pontes de. Fontes e Evolução do direito civil brasileiro. 2. Ed. – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1981, p. 62-64.

[46] Consta ainda que em 1917 foram consultadas as obras de Borges Carneiro (Direito Civil de Portugal), Clamion e Planiol (Direito Civil Francês), porém nos anos seguintes não foram mais acessadas. Interessante anotar também que nenhum aluno consultou a obra do italiano Enrico Cimbali, a qual é bastante cáustica aos olhos dos cultores da centralidade do Código, como se verá adiante.

[47] Descompasso que foi também anunciado pelo professor Orlando Gomes, em obra intitulada “Crise do Direito”. Em suas páginas introdutórias, anuncia o civilista da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia que mesmo ante a perda de equilíbrio e majestade do padrão clássico, que estava sendo bombardeado pela realidade subjacente e pelas novas manifestações jurídicas que brotavam da sociedade, revelando assim as suas mais evidentes contradições, ainda pairava “a moldura liberal do pensamento dominante”, que admitia apenas “os aspectos políticos da questão” repelindo “seus termos sociais, apresentando a liberdade sob uma forma puramente abstrata vazia de conteúdo social, aristocratizada num sistema de franquias”, que interessava tão somente a uma minoria privilegiada. GOMES, Orlando. A crise do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1955.

[48] Interessante notar que desde o primeiro ano do Curso Jurídico no Paraná, já contava a sua biblioteca com obras de autores nacionais, a exemplo de Carvalho de Mendonça e Lacerda de Almeida, que demonstravam a visão estreita dos códigos modernos, bem como a necessidade de constante adaptação do direito conforme as novas exigências e configurações sociais. Também se faz curiosa a presença da importante obra de Enrico Cimbali, em que alardeava a “Nova fase do Direito Civil” e a necessidade de um Código Privado Social. Conforme Catálogos da Biblioteca e Inventários da Biblioteca da UP, 1913, 1914-1920, e conforme Relatório Geral da Universidade Federal do Paraná de 1913. CARVALHO DE MENDONÇA. Manoel Ignacio. Contractos no direito civil brasileiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1911. LACERDA DE ALMEIDA, Francisco de Paula. Obrigações: Exposição Systematica desta parte do Direito Civil patrio em seguimento aos ‘Direito de Familia’ e ‘Direito das Cousas’ do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira. Typographia de Cesar Reinhardt, 1897. E do mesmo autor: O Código Civil visto por alto ou Reparos críticos a varias de suas disposições mostrando o modo como foram tratadas no Código as differentes matérias de que se occupa o Direito Civil. 1921.

[49] Segundo Bercovici, a partir de Weimar e da Constituição do México de 1917, a característica essencial das constituições do século XX passa a ser o caráter diretivo e programático, no sentido de incorporar conteúdos de política econômica e social. “A tentativa de incorporação da totalidade do povo no Estado passa a exigir a presença de uma série de dispositivos constitucionais que visam a alterar ou transformar a realidade socioeconômica. A reação a esta incorporação de temas de política econômica e social nos textos constitucionais gera boa parte do debate político-constitucional do século XX, iniciado entre nós na década de 1930. As constituições sociais do século XX, assim, não representam mais a composição pacífica do que já existe, mas lidam com conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo de busca de realização de seus conteúdos, de compromisso aberto de renovação democrática.” As constituições passam então a albergar o conflito, de maneira a representar outras classes que não apenas a dominante, tornando-se espaço de disputa político-jurídica. Assim, para o autor a Constituição de 1934, seguindo o exemplo de Weimar incluiu um capítulo referente à Ordem Econômica e Social (Título IV, arts 115-140). Há ainda uma série de outras novidades substanciais a exemplo do capítulo “Da Família, da Educação e da Cultura”, bem como a constitucionalização das medidas tomadas pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas, como as relativas aos direitos trabalhistas e à previsão expressa de direitos sociais, além da inauguração da mudança da concepção do direito de propriedade, indicando que esta deve ser utilizada de acordo com o interesse social. Para Bercovici a Constituição de 1934 é a primeira “Constituição Econômica” programática do Brasil. BERCOVICI, G. Op cit., p. 381-183.

[50] Foram encontradas provas manuscritas da década de 1940, relativas aos exames de validação de cursos realizados em outras instituições de ensino jurídico, nas quais observa-se o questionamento de matérias expressamente tratadas pelo Código ou ainda a indicação de que se objetiva uma resposta de acordo com o conteúdo do texto legal. Tomando como exemplo a prova do candidato Cleófas Beltrán Silvestre os pontos sorteados foram: “Quais as formas de mandato existentes em nosso direito?”; “Como deve entender-se a irrevogabilidade do mandato?” e “Interrogação dos artigos 1303, 1305, 1308 e 1315 do Código Civil”. Exames de Validação, 23/11/1948. Fonte: Arquivo Inativo da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

[51] Previa o art. 195 do Estatuto da Universidade que serão escolhidos pontos pelos lentes responsáveis pela cadeira, dentre os constantes do programa lecionado durante o ano, tanto para a prova escrita quanto para a prova oral. Estatutos da Universidade do Paraná. Curityba: Livraria Leitner, 1915, p. 46-47.

[52] No texto intitulado A Cláusula ‘Reservati Dominii”, Pamphilo sustenta uma interpretação estreita da lei. Para ele, “não obstante as opiniões dos mestres que acceitam a validade da cláusula ‘reservati dominii’, nos contratos de compra e venda, entende que não há fundamento jurídico, ou seja, lei, que a sustente. Discordando de dois doutrinadores: Espínola e Carvalho de Mendonça nesse aspecto. ASSUMPÇÃO, João Pamphilo Velloso de. A Cláusula “Reservati Domini”. Paraná Judiciário, Anno V, Abril de 1929, vol. IX, Fasc. IV, p. 271-276.

No texto Embargos de Terceiro Pamphilo mais uma vez demonstra sua vocação formalista. Ao comentar um Acórdão, com cujo teor não concordou, estabelece uma rigorosa exegese acerca das disposições do Código de Processo Civil do Estado, concluindo que “Por conseguinte parece que o venerando acórdão que comentamos não decidiu de acordo com o direito”e que “O poder de julgar não se pode superior ao poder da lei e da razão jurídica. O direito formado pela jurisprudência não pode ser contrário às leis nem à razão jurídica”. ASSUMPÇÃO, João Pamphilo Velloso de. Embargos de Terceiro. Paraná Judiciário, Anno IV, maio 1930, Vol. XI, Fasc. V, p. 427-432.

[53] CAMAGO, Affonso Alves de. Mensagem de 1º de fev. de 1917. Arquivo Público do Paraná, p. 12.

[54] Faculdade de Direito DO PARANÁ. Anuário de 1940. Nº 2. Discurso de Paraninfo de Affonso Camargo. Curitiba: Tipografia de João Haupt e Cia., 1941.

[55] FRANCO, Antônio Martins. Palavras de Paranympho. Curityba: Typografia João Haupt & Cia., 1937.

[56] De autoria do professor Vieira de Alencar, cujas fontes são bastante escassas, tem-se como elemento de análise de suas ideias apenas um texto publicado na Revista Paraná Judiciário. Nele verifica-se a sua preocupação em interpretar um determinado artigo do Código Civil de acordo com os demais regramentos que formam o sistema, ou seja, não se distanciando do regramento legal como um todo. Sendo necessário lembrar ainda que Vieira de Alencar também apresenta programas bastante apegados ao Código, o que, somado ao seu perfil de formação e trajetória profissional indica que também se volta à positividade legal. ALENCAR, Manoel Vieira Barreto de. Prescripção da acção real de reinvidicação. In: Revista Paraná Judiciário. Anno V, novembro de 1929, Vo. X, Fasc. V. p. 331-337 (novembro de 1929). p. 331-337.

[57] Faculdade de Direito do Paraná. Anuário de 1941. Curitiba: Tipografia João Haupt e Cia., 1942, p. 33-35. Nesta data o Diretor da Faculdade de Direito era o professor Affonso Camargo.

[58] Para Grossi “A ordem jurídica burguesa tem por escopo primário a tutela da propriedade individual, elevada a direito subjetivo, isto é, a situação inatacável por parte das forças históricas contingentes; e a tutela do contrato como instrumento indispensável para a circulação proprietária, é por isso salvaguardada na sua liberdade” (tradução livre).GROSSI, Paolo. La cultura del civilista italiano. Milano: Giuffrè Editore, 2002.p. 33.

[59] Segundo Grossi, a despeito de sua fragilidade especulativa, o positivismo filosófico permitiu a quebra de velhas e estreitas incompreensões, assim como tentou o início da “Nova fase do direito civil nas relações econômicas e sociais”. Frase esta título de uma das obras de Enrico Cimbali (1855-1887), representante dos homines novi da Itália. Cimbali representa um grupo de civilistas sensíveis às grandes mudanças sociais e econômicas da Itália do fim do século. E, mesmo sendo uma corrente minoritária, em relação a uma maioria que segue os exercícios exegéticos ou construções formais embasadas no Código, foi responsável pela agitação, elevação de problemas e desmistificações. Ibidem, p. 27.

Quiçá a aceitação de Cimbali siga a mesma razão da dos demais civilistas e filósofos do direito (a exemplo de Ihering em sua segunda fase) que seguiam as formulações do positivismo filosófico, cujas ideias tomaram corpo nos fins dos oitocentos e também tiveram guarida no Brasil. Mas que, a despeito de ter agitado as clássicas concepções da “idade do Código”, não parece ter afetado o império do “positivismo jurídico” que se estabeleceu com mais força após a edição do Código Civil de 1916 (sendo corrente dominante no Brasil por quase a totalidade do século XX).

[60] PIEDADE, José de Alencar Ramos. O damno moral. Coritiba: Typographia da Livraria Econômica, 1916. p. 8.

[61] Piedade reserva dezessete páginas de sua tese ao tratamento desse tema. Menciona a legislação italiana que tende a determinar a responsabilidade dos proprietários de fábricas, minas e armazéns, pelos danos produzidos pelo trabalho em casos fortuitos, e novamente faz uso dos ensinamentos de Cimbali, aludindo que a mencionada legislação tem como escopo a aplicação perante “a associação a organisação gigantesca da grande indústria, onde o operário, que é de carne e osso, se acha diariamente junto – a machina – instrumento inexorável do capitalista que, depois de o haver extenuado e consumido, o despede desapiedadamente de seus empregos.” É válido lembrar que nesse momento (1916) as agitações sociais, em especial as de trabalhadores livres, já possuíam expressiva visibilidade nacional e local, o que parece indicar que Piedade preocupou-se em abordá-las na mencionada tese. Ibidem, p. 28-29.

[62] Pamphilo d’Assumpção também parece ter deixado a cátedra de Direito Civil na década de 1920, não tendo sido encontrado registro de seu nome após esse período.

[63] No texto intitulado Um Código Civil, de 1966 (escrito vinte anos após a sua tese de ingresso na FDUP), verifica-se a opinião contrária a algumas formulações mais críticas entabuladas por Orlando Gomes, elaborador do Anteprojeto de Código Civil de 1963, o qual constituiu na Câmara dos Deputados o Projeto nº 3.263 de 1965. Altino Portugal chega a assumir que, a despeito de constituir-se o Código Civil de 1916 em monumento da cultura jurídica, é necessário modernizá-lo. Entende não ser possível que a legislação reste infensa aos novos rumos da economia, aos poderes que o Estado passou a deter, às posições múltiplas que os homens assumem. Segundo ele, “Não pode um Código distanciar-se da realidade, nem desprezar a evolução, sob pena de se tornar inadequado”, o que não quer dizer, entretanto, que ele aceite totalmente a assimilação das “novas ideias”: “Isto, contudo, não significa que sua atualização deva fazer-se, apressadamente, sem o completo amadurecimento das novas ideias”. Adiante passa a contestar algumas proposições do mencionado Anteprojeto de Lei de autoria de Gomes, dentre as quais é exemplar a relativa à limitação do direito de propriedade. Para Portugal, o Anteprojeto de Gomes teria feito grandes alterações no direito de propriedade, no tocante ao seu exercício, com as quais não concorda. Refere que o esboçado art. 359 o condiciona a um fim econômico e social e que o, também proposto por Gomes, art. 363, ao tratar da propriedade exercida por meio de empresa, subordina seu exercício ‘às exigências do bem comum e às disposições legais que limitam seu conteúdo, que lhe impõem obrigações e que lhe reprimem os abusos’. O professor da FDUP acredita que sua posição resta justificada pelo teor das limitações expressas contidas na Constituição. Por outro lado, aduz que não há no Anteprojeto as coordenadas necessárias para se situar o ‘fim econômico e social’ e as ‘exigências do bem comum’, assumindo, assim, uma atitude totalmente negadora dos avanços sociais já propugnados desde a Constituição de 1934, preferindo negar a destinação social do direito de propriedade, do que eventualmente contribuir para a definição de seus contornos. Também contraria a “perda da propriedade imóvel por abandono” (art. 460 do Anteprojeto) trabalhada por Gomes, sob o fundamento de que esta construção traria resultados desastrosos na prática, uma vez que sequer a posse do imóvel, para restar caracterizada, exigia contato permanente do possuidor com a coisa possuída. Enfim, percebe-se um renitente conservadorismo por parte de Altino Portugal, num momento em que as concepções solidaristas e a função social da propriedade já integravam o texto constitucional, e em que mesmo doutrinas nacionais anunciavam as concepções aniformalistas e de cunho “solidarista”, como a de Orlando Gomes. PEREIRA, Altino Portugal Soares. Um código Civil. Revista Fórum do Paraná. Maio, Junho, Julho e Agosto de 1966. Ano V, nº 22, p. 01.

[64] O peso legalista na França também importou em manifestações antagônicas ao Código. Segundo Grossi, o drama do século XIX francês foi sendo anunciado por escritos que tratavam da separação entre o texto codificado e a experiência e da impotência desse texto para ordenar uma experiência cada vez mais complexa. E, assim, na última década do século XIX um movimento científico coloca em debate a passividade do Código e a necessidade de recuperar seu trabalho de construção. Esse movimento debruçava-se sobre os problemas espinhosos que o Código deixava de resolver, especialmente os de cunho ético, social e econômico. O trabalho desses juristas voltava-se para o abuso do direito, a fim de controlar o exercício da liberdade do indivíduo em nome de uma visão mais solidarista. Precursor dessas ideias foi o professor de Direito Civil Raymond Saleilles (1855-1912), que enfrentou abertamente a problemática das fontes na França dos finais do século, momento em que o Código parece perder força na dinâmica da vida jurídica. O autor francês discutiu o método de estudo das Faculdades de Direito francesas, monotonamente exegético, o qual não permitia sequer que os estudantes percebem o sistema civilístico. Segundo Grossi, o mal-estar sentido por Saleilles foi igualmente nutrido por François Gény (1861-1959), que também enfrenta a questão das fontes e a temática da interpretação. Porém, diferente de Saleilles, que produziu numerosas contribuições pontuais, Gény produz uma grande obra de análise crítica e de reconstrução sistemática em 1899, intitulada O método de interpretação e as fontes no direito privado positivo. A mencionada obra de Gény, nas palavras de Grossi, nasce da contemplação da complexidade infinita e da mobilidade incessante da vida social, convertendo-se inevitavelmente na rebelião contra o “fetichismo da lei escrita e codificada”, uma vez que a ‘lei é apenas a revelação imperfeita” da riqueza infinita do Direito, de maneira que é insuficiente para regular sozinha o mundo jurídico. GROSSI, Paolo. Europa y el Derecho: La construcción de Europa, director Jaques Le Goff. Traducción castellana de Luigi Giuliani. Crítica: Barcelona, 2008. p. 156-159.

[65] São exemplos os programas de Filosofia do Direito dos anos de 1941 a 1945.

[66] GROSSI, P. La cultura del civilista… . GROSSI, P. Europa y el Derecho… .

[67] O Brasil sofreu em seus primeiros anos do século XX transformações abruptas no que diz respeito à urbanização e ao crescimento acelerado de indústrias. Junto com este crescimento igualmente emergiu a questão social, a exemplo das conhecidas greves de trabalhadores livres que se avolumam a partir das primeiras décadas do século XX, sendo a mais expressiva da insatisfação popular a greve geral de 1917. Muito embora o centro da economia na República Velha ainda residisse no campo, em especial no que tocava a produção do café, para Boris Fausto, foi sobretudo nos setores secundário e de serviços que o conflito social se concentrou. Segundo o autor os serviços eram atividades importantes para o desempenho do núcleo estrutural, já que a atividade agrícola voltada para exportação dependia de muitas outras, como as necessárias ao escoamento da produção. Por outro lado, também o crescimento dos núcleos urbanos gerou um fluxo maior de serviços e de atividades relacionadas ao setor secundário, de modo que nas primeiras décadas do século XX o Brasil contava com um contingente considerável de trabalhadores livres, cujas condições de trabalho e de sobrevivência não eram satisfatórias. FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo: Difel, 1986. p. 21.

Entre as principais reivindicações dos trabalhadores estavam aquelas relacionadas com a sua posição vulnerável em relação ao empregador, que acusavam a total inexistência de proteção e de garantias frente ao empregador. As questões sociais especialmente as relacionadas ao trabalho se impõem, buscando reclamar a proteção mínima do trabalhador. Isso porque a regulamentação das relações de trabalho tinha sido relegada aos tímidos contornos do contrato de locação de serviços previsto no novo diploma Civil, tal qual fizeram os Códigos modernos como o Francês e o Italiano.

[68] Assim como entre os principais Códigos modernos, no Brasil a questão relacionada ao trabalho livre passou a ser regulada debilmente pelo contrato de locação de serviços, o qual, além de desconsiderar a desigualdade material das partes envolvidas, ignorava toda a complexa questão social que a relação envolvia. E, então, sobretudo após as agitações sociais (especialmente as do período 1917-1920) essa configuração começa a mudar. O Brasil, seguindo o modelo das nações europeias, acaba por editar leis sociais, ainda que para tanto tivesse concorrido uma série de resistências, que dificultaram tanto a luta operária quanto o reconhecimento da plataforma de reivindicações.

Nesse particular Grossi enfatiza que as leis sociais dos fins do século XIX, surgem na Europa a partir da reivindicação contrária às consequências decorrentes, especialmente na Inglaterra, Alemanha e França, do triunfo do capitalismo maduro e da difusão da grande empresa, o que o estabelecimento de um sentimento comum de exploração, bem como o planejamento de lutas comuns por parte dos operários. Essas leis sociais tinham como conteúdo os acidentes de trabalho, o trabalho infantil e de mulheres, a higiene e segurança nas fábricas, seguro obrigatório de idade (velhice) e invalidez, caixas de previdência, assim como o regramento de procedimentos de conciliação e arbitragem nas controvérsias entre patrões e empregados.

Os desdobramentos desse movimento de revolta por parte da classe trabalhadora, entretanto, possuem, no entender do historiador do direito italiano, cunho solidarístico e não socialista. Isso porque parte de uma parcela da burguesia que decide responder, dentro de certos limites, para o fim de atenuar desequilíbrios sociais excessivos, e acaba por advogar a intervenção do Estado no plano econômico e social, a fim de aliviar as situações de mal-estar. Assim, para Grossi, a edição dessas leis sociais na Europa deve ser entendida como “solidarismo jurídico” e não “socialismo jurídico”, já que representou um instrumento de conservação, como afirmação não da debilidade do Estado que cede ante as reivindicações da rua, mas de sua força. GROSSI, Paolo. Europa y el Derecho…, p. 161-167.

As chamadas leis sociais também acabam sendo editadas no Brasil, num contexto pós-codificação e igualmente à parte do principal regramento civil, ou seja, do Código. É também nessa conjuntura que o Tratado de Versalhes é editado em 1919 (dois anos após a vigência do Código Civil de 1916), produzindo importante impacto em termos de “solidarismo” no país.

[69] Para Fonseca e Galeb: “Realmente, o grande sentimento causado nas classes dominantes foi o medo. Esse medo, somado à perplexidade que a força do movimento causou e a repressão cerrada que se seguiu, nos faz concluir que a população “tradicional” curitibana percebeu, conforme os ecos dados pelos jornais, que havia uma agitação diferente, que nunca tinha sido vista antes na cidade.” FONSECA, Ricardo Marcelo e GALEB, Maurício. A Greve Geral de 17 em Curitiba: resgate da memória operária. Curitiba: IBERT, 1996, p. 64-65.

[70] Maiores detalhes sobre as relações havidas entre os professores da FDUP e a sociedade e política locais, consultar o estudo prosopográfico constante da dissertação de mestrado de Priscila Soares Crocetti.

[71] Paraná Judiciário, Anno III, Julho e agosto de 1927, Vol. VI, Fasc. I e II, p. 01/04.

[72] A respeito, conferir: SBRICCOLI, Mario. Storia del Diritto Penale e della Giustizia. Scritti editi e inediti (1972-2007). Milano: Giuffrè Editore, 2009 e ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, Criminologistas e Juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-1930). Tese de Doutorado em Sociologia apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1996.

[73] Fruto da aplicação do método positivista ao âmbito do Direito Penal, naquela histórica (século XIX) aproximação desta disciplina às demais ciência sociais, então marcadas pelo método próprio às ciências naturais, o positivismo criminológico propõem, em termos gerais, uma passagem do estudo do crime enquanto concepção jurídico abstrata ao estudo focado no criminoso. De acordo com os postulados positivistas, o direito de punir passa a repousar sobre a necessidade de conservação social: tal direito decorre da necessidade de defesa social, e não da responsabilidade moral do delinquente. O delito vem considerado, nesses termos, como “fenômeno natural”, de modo que o seu estudo deve partir do estudo da sociedade humana, e em consequência extingue-se a possibilidade de imputabilidade moral do delinquente. É virada do crime ao criminoso: o delinquente se torna a figura protagonista da ciência penal, que passa do direito à antropologia, à sociologia criminal. Consequentemente, o critério da pena deve ser mesurado sobre a periculosidade do delinquente, tornando-se decisiva a classificação dos delinquentes. Considerando-se, assim, o crime como um fenômeno natural, que deve ser estudado no contexto social, bem como especialmente a partir dos aspectos individuais do delinquente (bio-psicológicos) e dos elementos naturais do seu entorno, a prevenção naturalmente assume papel primário, tornando-se necessária a introdução de substitutivos penais do campo político, econômico, administrativo, científico, religioso, educativo, familiar. A chamada escola positiva, criada deliberadamente pelo jurista italiano Enrico Ferri em oposição à chamada escola clássica, voltada a uma conceituação abstrata de crime e que teve como maior expoente o jurista Francesco Carrara, será chamada também de “Nova Escola”. SBRICOLLI. Op. Cit. p. 550.

[74] Nesse contexto, Curitiba não se coloca entre São Paulo e Recife a partir da necessidade de posicionar-se ante duas (supostas) tradições distintas (uma permeada que estava desde o final do século XIX pelas ideias da criminologia positiva e outra que quanto a elas pouco se interessou até certo momento). Coloca-se, sim, no influxo de um ideário que se no momento em que se formava Martins Franco ainda não se percebia difundido pelo ensino em São Paulo, naquele mesmo ano em que esse estudante paranaense voltava à Curitiba com o título de bacharel, o corpo docente daquela instituição passava a ser integrado por Cândido Nanzianzeno Nogueira da Mota, jurista que institucionalizou a criminologia positivista nas Arcadas (cf. ÁLVAREZ. Op. Cit. p. 87, 88 e 123).As ideias do positivismo criminológico já circulavam no meio local anteriormente à fundação da FDUP. O advogado José Alencar Piedade, em texto com o qual abria o primeiro exemplar da Gazeta dos Tribunais dizia, partindo do conhecido texto de Viveiros de Castro sobre a “Nova Escola Penal” e fazendo conclamo em prol do estabelecimento de um instituto de advogados no Paraná, que: “Dos bancos acadêmicos viemos e com distintos colegas, não temos esmorecidos na luta pelo Direito, estudando e perscrutando não só as fontes da ciência criminal, como as fontes de todas as ciências sociais e jurídicas, abraçando com ardor e entusiasmo, além da nova escola penal, os princípios da escola positiva do direito, que cada vez mais, por seus conceitos e nobilíssimos princípios vão se impondo à admiração de todos os estudiosos, conquistando adeptos em todas as partes do mundo civilizado, onde se cultivam as letras jurídicas.” (PIEDADE, José de Alencar. Um Instituto de Advogados no Paraná. In: Gazeta dos Tribunais: revista mensal de Doutrina, Jurisprudência e Legislação. Ano I, vol. I, nº 1. Coritiba: Typographia da Penitenciária, novembro de 1913. p. 1). Conforme indicado ao final do texto, este escrito de Piedade já havia sido publicado no jornal do “Comércio do Paraná”. E se circulavam tais ideias nesse momento, também desde então já encontravam resistência e críticas por parte de alguns juristas.

[75] ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As tres escolas penaes: classica, anthopologica e critica (estudo comparativo). 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. Nesta didática obra, Moniz Sodré discorre sobre a Escola Clássica, Escola Antropológica e Escola Crítica em quatro capítulos, antecedidos por um primeiro que traz noções históricas sobre o advento de cada escola. Cada um dos quatro capítulos dedicados ao estudo comparativos entre as escolas tem como eixo de análise uma pergunta, a partir da qual a comparação é desenvolvida (“Em que se funda a responsabilidade penal do criminoso?”; “Que é crime? Qual o seu conceito”; “O criminoso é um homem normal igual ao comum dos indivíduos, ou um typo anômalo, uma variedade distincta da ‘genus homo’?; “Qual o conceito e quaes os efeitos da pena?”). Um sexto capítulo é dedicado às novas correntes penais[75], e o último a uma recapitulação e conclusão.

[76] NERY, Fernando. Lições de Direito Criminal. Rio de Janeiro: Casa Edictora Psychica, 1910.

[77] Ibid. p. 7.

[78] Ibid. p. 25 e 26.

[79] Ibid. p. 194 e 195.

[80] Ibid. p. 195 e 196.

[81] Médico italiano considerado o precursor da antropologia criminal.

[82] Jurista italiano, criador e maior expoente da chamada escola positiva.

[83] Magistrado italiano também considerado uma dos maiores expoentes da criminologia positiva.

[84] VIANNA, Paulo Domingues. Direito Criminal. Segundo as preleções professadas por Lima Drummond na Faculdade Livre de Sciencias Juridicas e Sociaes do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguet e Cia Editores, 1915.

[85] Segundo Lima Drummond, “[a] Terza Scuola reconhece a improcedência de responsabilidade penal que coincida com a famosa responsabilidade social, em cujo conceito se descobre sem dúvida uma inversão ideológica. Por isso, apesar de determinista, aceita a imputabilidade penal com o pressuposto da responsabilidade moral, que aliás se não baseia no livre arbítrio, porquanto para os sectários da Terza Scuola o fundamento da responsabilidade moral somente pode ser encontrado na capacidade que o homem tem de resolver-se autonomicamente por motivos” (Ibid. p. 85). “Se é inconcebível a imputabilidade criminal sem o pressuposto da responsabilidade moral – como ensinam os sectários da Terza Scuola e se a responsabilidade moral é inadmissível sem o fundamento do livre arbítrio – como doutrinam os sectários da Nuova Scuola, é incontestável que da luta e do antagonismo das escolas deterministas ressurge vitoriosa, como um postulado científico, a afirmação da escola clássica no tocante ao fundamento da imputabilidade criminal.” (Id.)

[86] Considerando ser impossível conceber-se para o homem racional um agir sem motivos, mas afirmando que considerar o agir unicamente a partir dos motivos seria “escravizar” o homem a eles, conclui Lima Drummond que: “Não são os motivos que determinam a vontade de agir, mas é a vontade que se determina a si mesma à vista dos motivos. Para decidir-se livremente, não é necessário que o homem o faça sem motivo. O bem é o objeto próprio e necessário da vontade, assim como a verdade é o objeto direto da inteligência. A razão há de, portanto, esclarecer – em circunstâncias normais – as resoluções do homem; orientando-lhe a vontade. Do que o homem dispõe é da faculdade de escolher entre os diversos motivos que solicitam a sua atividade e de conceder a um dentre estes motivos preponderância na determinação volitiva, resistindo com a força da vontade adquirida na formação do caráter aos ímpetos das paixões que o procuram afastar do caminho do dever.” Id.

[87] DRUMMOND, João da Costa Lima. Estudos de Direito Criminal. Laemmert & C. – Editores: Rio de Janeiro, 1898.

[88] Ibid. p. V.

[89] ALVARES. Op. Cit. p. 245.

[90] Ibid. p. 247-248.

[91] Ibid. p. 248.

[92] Isso não quer dizer que um expoente do positivismo criminológico como Enrico Ferri não propusesse na sua concepção de “Sociologia Criminal” que o estudo do crime deveria ser um estudo geral da criminalidade, de modo que a ciência criminal estaria dividida em um ramo biossociológico e outro jurídico. Este último, destinado ao estudo técnico jurídico do crime, seria apenas a parte da ciência criminal incumbida da defesa social: mera arte dependente das normas formuladas pela atuação científica. A ciência jurídico-penal é, assim, anulada, sendo substituída pelo método científico. ANDRADE, V. R. P. A ilusão de segurança jurídica… p. 76-79.

[93] “[…] da mesma forma que o Estado intervencionista não implica o abandono da estrutura institucional e discursiva do Estado de Direito (e de uma ‘legitimação pela legalidade’) o Direito Penal intervencionista não implica o abandono discursivo do Direito Penal do fato. Daí o espaço para um Direito Penal de conciliação que, não podendo abandonar as garantias penais passa a requerer, não obstante paradoxos encetados a nível legislativo, uma intervenção sobre a ‘personalidade perigosa’ do delinquente, com medidas curativas, em nome da defesa social” (Ibid. p. 72 e 73). Pretendendo-se como ciência (já que colocava como objeto de investigação dados de fato), a criminologia positivista promoveu uma crítica à tradição liberal sob, justamente, a bandeira da cientificidade: partindo de uma a priori racionalista, os juristas “clássicos”, segundo os positivistas, não cultivavam uma ciência, o que somente ocorreria através dos métodos (estatísticas, análises antropológicas) próprios à escola positiva. Os positivistas, por sua vez, sofriam uma crítica no sentido de que considerando que os fatos por eles trabalhados eram dados extrajurídicos, o seu labor poderia ser considerado ciência, mas não uma Ciência Jurídica. Trata-se, então, de uma discussão que já não diz respeito às questões penais (como o crime, o criminoso e a pena), mas sim ao próprio estatuto epistemológico das ciências penais: “as antagônicas distinções das Escolas vão cedendo lugar a uma diferenciação de Ciências; a uma divisão do trabalho científico entre Dogmática Penal e Criminologia” (Ibid. p. 74 e 75). Seja pensada como fruto da influência de um discurso externo (formado pelo desenvolvimento das ciências nos moldes daquelas naturais e sendo veiculadores desse discurso sobretudo os médicos), seja como desenvolvimento interno ao próprio discurso jurídico (que então pretende se aproximar do que, à época, era considerado ciência), a redefinição da Ciência Penal é resultado do fato de os postulados positivo-criminalistas haverem colocado em xeque a identidade da ciência jurídico-penal. Essa “chacoalhada” promovida pelo positivismo criminológico em uma antiga tradição italiana que “cochilava” um pouco (SBRICCOLI. Op. cit. p. 564) fará com que a ciência jurídico-penal se desenvolva e reivindique a sua autonomia, afirmando o papel do jurista e a análise do crime como ente jurídico, atribuindo à criminologia um papel auxiliar.

[94]Ibid. p. 73.

[95] É de se cogitar que Ulisses Falcão Vieira, bacharel formado no Rio de Janeiro, tenha sofrido influência de grandes expoentes da corrente criminologia positivista nacional, como Viveiros de Castro, que formado na FDR, com a República passa a residir no Rio de Janeiro, dando aulas na Faculdade Livre de Direito. ÁLVAREZ, M. C. Bacharéis, Criminologistas e Juristas. p. 100.

[96] VIEIRA, Ulysses Falcão. O criminoso e a repressão penal. In: Paraná Judiciário, vol. IX, fascículo V, maio de 1929. p. 348-356.

[97] FACULDADE DE DIREITO DO PARANÁ. Programa da 8ª cadeira de Direito Penal (I Parte), 3º ano, apresentado pelo Dr. Ulysses Falcão Vieira. Typ. João Haupt & Cia.: Curityba, 1924. In: Arquivo da Biblioteca de Ciências Jurídicas da UFPR.

[98] SBRICCOLI. Op. cit. p. 562.

[99] FACULDADE DE DIREITO DO PARANÁ. Livro de Atas de Concursos Docência Livre e Cátedra – 28.10.1929 à 17.09.1948. p. 12 e 13. In: Arquivo da Direção do Setor de Ciências Jurídicas da UFPR.

[100] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Construção e identidade da dogmática penal: do garantismo prometido ao garantismo prisioneiro. In: Revista Sequência. Publicação do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. v. 29. nº 57. dezembro de 2008. p. 239.

[101] Trata-se de uma mudança de objeto que implica também uma redefinição do campo jurídico, nomeadamente pela alteração da figura do penalista: o penalista da criminologia positivista, que deveria estar apto a transitar pelos domínios da sociologia, da psicologia e especialmente da medicina, deveria então dar lugar ao penalista tecnicista, a quem o texto de lei (especialmente o código) era destinado, em um processo de “desmedicalização do crime”. SONTAG, Ricardo. Código e Técnica. A reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e atitude técnica diante da lei em Nelson Hungria. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito, Programa de Mestrado, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito à obtenção do título de Mestre em Teoria e Filosofia do Direito. 2009. p. 71 e 72).

[102] O perfil do ensino, segundo Nelson Hungria, era conformado a partir da configuração do Júri, de modo que os estudantes eram orientados (dada a predominância no ensino do embate entre as escolas penais e a crítica exacerbada ao direito penal constituído) por uma formação que ao final visava apenas um bom desempenho no Júri. Essa instituição, no âmbito da qual aquele modelo de bacharel intrinsecamente ligado ao perfil intelectual do homem de letras tinha atuação destacada, embora tivesse sido objeto de combate pelo positivismo criminológico (que colocava a ciência contra a retórica), acabou por fazer do argumento cientificista componente justamente do desempenho oratório do advogado (incluindo em seu discurso persuasivo a carga de “verdade” promovida pela inserção de argumentos “científicos”), como criticava Hungria, para quem a lei (enquanto objeto do jurista) deveria ser o antídoto contra a retórica. Roberto Lyra – que tecnicista como Hungria não era, mas que com ele partilhava a concepção de um ensino jurídico que estivesse restrito à lei, deixando ao curso de doutorado às reflexões que fossem além do objetivo profissionalizante – criticava o bacharelismo liberal. Fazia-o, entretanto, não em nome da lei, como Hungria, mas em nome da ciência (Ibid. p. 123-129). Contra um ensino jurídico marcado pela tradição bacharelesca do século XIX (embora já afetado pela incursão do ideário cientificista, identificado nesse momento no âmbito do Direito Penal com o positivismo criminológico), duas frentes de oposição podem ser identificadas: uma em Nelson Hungria e outra em Roberto Lyra. Hungria, que conforme esclarece Ricardo Sontag, pouco escreveu a respeito do ensino, colocava a lei contra o bacharelismo, reconfigurando a atividade do jurista para a aplicação da lei. Com esse escopo limitava em grande medida a atuação do jurista à exegese do direito positivo e posterior elaboração dogmática em conceitos e institutos. Lyra não limitava a atuação do jurista ao texto legal, considerando um erro adstringir a metodologia jurídico-penal ao trabalho sobre os textos legais; no âmbito do ensino, entretanto, partindo de uma perspectiva que tinha por objetivo uma formação que fosse eminentemente profissionalizante, limitava os estudos jurídicos da graduação ao texto de lei. Ibid. p. 129.

[103] A tese por ele apresentada como requisito à participação no concurso de 1936, intitulada O Homicídio Consensial, é bom exemplo de reflexão em grande medida conciliadora dos pressupostos da tradição classicista e daqueles da escola positiva. Na mesma penada em que afirma a importância da noção de “motivos determinantes” proposta por Enrico Ferri para a adequada regulação penal da hipótese do homicídio que ocorre com o consentimento da vítima, conclui serem eles (os “motivos determinantes”) em grande medida a reprodução com outras vestes do clássico dolus malus (afirmando mesmo que “o critério psicológico residente na indagação dos motivos é inato no homem, como nas agremiações por ele fundadas”) bem como noção incapaz de resolver satisfatoriamente a questão, já que poderia mesmo implicar uma banalização do homicídio, desconsiderado em toda sua gravidade “para assumir, tão somente, uma feição delituosa, quando originada de uma causa vil”. Não se pode deixar de considerar que essa atenção dada a uma noção ferriana decorra do fato de o escrito que ora analisamos ser endereçado à apreciação por uma banca de concurso composta por Ulisses Falcão Vieira, quem, como vimos, muito se inclinava ao estudo e à propagação do ideário criminológico positivista. Até porque do conjunto de escritos de autoria de Laertes Munhoz que pudemos recolher não se vislumbra uma preocupação do autor com essas questões. Com efeito, bem mesmo encontremos escrito em que esse professor do curso de direito volte a se dedicar a alguma proposição da escola positiva. MUNHOZ, Laertes Macedo. O Homicídio Consensial. Tese apresentada à Congregação da Faculdade de Direito do Paraná, em concurso realizado para o cargo de Docente Livre da Cadeira de Direito Penal. Curitiba, 1930. pp. 16 e 71.

[104] Com a apresentação da tese intitulada Da Causalidade Subjetiva no Código Penal Brasileiro. Curitiba: Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1943.

[105] SBRICCOLI, Mario. Op. cit. p. 573 e ss. Cabe registrar: ao ápice do movimento criminológico-positivista na Itália segue-se uma definitiva reinvindicação do objeto e do labor eminentemente jurídico da Ciência Penal (SBRICCOLI, Mario. Op. cit. p. 573 e ss.), reinvindicação essa que se, por um lado, encontra na Itália a sua definitiva conformação, por outro constitui movimento anterior (cronologicamente coincidente com o desenvolvimento do positivismo criminológico) que se desenvolve inicialmente na Alemanha. Com efeito, na mesma época em que na Itália atingia o seu ápice a chamada escola positivista, na Alemanha a Ciência Jurídica Penal se desenvolvia e assentava as bases da Dogmática Penal, que, posteriormente, seria recebida e definitivamente acabada na Itália. E esse desenvolvimento da Ciência Jurídica Penal se deu especialmente pelas obras de K. Binding e Franz von Liszt (ANDRADE. A Ilusão de Segurança Jurídica… 90 e 92). Nesse sentido, é absolutamente notável o fato de que os estudante do curso de Direito também consultassem, entre os anos de 1917 e 1922, com considerável frequência (embora nada parecido ao volume de consultas às obras de Moniz Sodré ou de Fernando Nery) o Direito Penal Alemão de Franz von Liszt (LISZT, Franz von. Direito Penal Allemão. Vol I e II. Traduzido por José Hygino Duarte Pereira. F. Briguiet & C. – Editores: Rio de Janeiro, 1899). Na Alemanha a “presença metodológica” do positivismo criminológico não teve a importância lograda na Itália, havendo prevalecido naquele país o positivismo jurídico que encontrando em Binding – penalista que considera o direito positivo “o único objeto e o ponto de partida possível do penalista” – e em von Liszt – que apenas se reporta ao positivismo criminológico paralela e secundariamente ao estudo dogmático do direito positivo, “procurando uma síntese conciliadora entre ambos – duas grandes matrizes da futura Dogmática Penal (ANDRADE. A Ilusão de Segurança Jurídica… 89 e 90). Trata-se de uma concepção de Ciência Jurídico-penal inegavelmente influenciada pela concepção positivista de ciência; mas que diferentemente do positivismo naturalista, elege como objeto único e necessário do penalista o direito positivo. ANDRADE. A Ilusão de Segurança Jurídica… 89 e 90.

[106] Em texto elaborado pouco tempo depois do advento do Código Penal de 1940, Laertes de Macedo Munhoz defendia o princípio da legalidade na conceituação formal do delito: “Manteve o novo Código Penal Brasileiro o princípio da legalidade esposando a antiga regra nullum crimem, nulla poena sine lege. Dada, embora, correntes de opinião contrárias, tudo está a mostrar que a melhor doutrina ainda se conserva com aquelas que impõem o elemento da legalidade à conceituação formal do delito. Aí se contem uma das garantias individuais, que se inscrevem na declaração dos direito do homem […]”. MUNHOZ, Laer

tes de Macedo. O princípio da legalidade na conceituação formal do delito. In: Paraná Judiciário. Ano XVII, setembro de 1941, vol. XXXIV, fasc. III. p. 115-132.

[107] ANDRADE. A Ilusão de Segurança Jurídica… p. 127 e 128.

[108] Na tese apresentada, em 1943, no concurso para a cátedra de Direito Penal, Laertes Munhoz, fazendo depender do elemento moral a conceituação do crime, dizia que: “Sendo o crime um ato humano, está, por consequência, subordinado ao concurso da vontade. Desta forma, as circunstâncias constitutivas do injusto não podem ser acontecimentos que independem da vontade humana. E como a liberdade da vontade é pressuposto de todas disciplinas práticas, o Direito Penal, como disciplina prática de caráter ético, não pode prescindir da responsabilidade moral. O homem delinquente não difere do homem honesto por particularidades físicas, senão pelos sentimentos de vontade. Daí a relevância do elemento moral do crime como condição indispensável à justiça da pena.” MUNHOZ, L. M. Op. cit. p. 141.

[109] MUNHOZ, L. M. Abberratio-ictus. In: Paraná Judiciário. Anno VII, janeiro-fevereiro-março vol XIII, fascs I, II e III. p. 01-07.

[110] ANDRADE, V. R. P.. A ilusão de segurança jurídica… p. 135.



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